Uma ou duas leis do desporto?
1. No âmbito de um curso de Pós-Graduação em Direito do Desporto da Universidade Católica Portuguesa, passe a publicidade, tivemos a oportunidade de ouvir as reflexões de colega brasileiro (Leonardo Andreotti) sobre a nova lei magna do desporto brasileiro. Previna-se que o sistema desportivo brasileiro não vive o mesmo grau de intervenção pública de que sofre o português. Contudo, não deixa de apresentar sinais dessa intervenção e lá, como cá e em outros países (caso de Espanha, com a sua lei do desporto de Dezembro de 2022), debate-se a legitimidade desse posicionamento público, particularmente centrado no relacionamento do Estado com as federações desportivas.
2. A principal referência do desporto brasileiro, em termos de lei-quadro, era a denominada Lei Pelé, a Lei nº 9.615, de 24 de Março de 1998. Utilizamos o passado, pois, no entretanto, veio a ser aprovada a Lei nº 14.597, de 14 de Junho de 2023, que “Institui a Lei Geral do Esporte”. No seu registo originário, a iniciativa legislativa apontava para mais privado e ainda menos público, no sistema desportivo brasileiro.
Sucede que tal texto, em conformidade com o modelo constitucional brasileiro, foi objecto de alterações provenientes de veto presidencial. Citando a mensagem presidencial nº 273, de 14 de Junho de 2023: “Senhor Presidente do Senado Federal, comunico a Vossa Excelência que, nos termos previstos no § 1º do art. 66 da Constituição, decidi vetar parcialmente, por inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, o Projeto de Lei nº 68, de 2017 (Projecto de Lei nº 1.825, de 2022, na Câmara dos Deputados), que “Institui a Lei Geral do Esporte”.
Ou seja, perdeu-se, pelo caminho, o reforço daquela matriz privatística, procurando-se manter, desta forma, a pegada pública presente na Lei Pelé. Muitos preceitos do projecto de lei foram vetados tendo por base juízos de inconstitucionalidade, mas também, em grande medida, sustentados na afirmação de que a “proposição legislativa contraria o interesse público”.
3. Dir-se-á que, aparte os juízos de inconstitucionalidade firmados pelo Presidente, a merecer leitura muito mais competente, tendo por base, desde logo o artigo 217.º da Constituição da República Federativa do Brasil, tudo o resto são questões de opção política, no caso desportiva.
Porém, o que mais impressiona neste agir presidencial é que a anterior Lei Pelé, que seria logicamente de revogar expressamente, se mantém em vigor.
Com efeito, o inciso II do artigo 217.º do projecto de lei revogava a Lei nº 9.615, de 24 de Março de 1998. Todavia, esta norma veio a ser vetada tendo como fundamento as seguintes razões: “Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público porque, na medida em que foram solicitados todos os vetos acima justificados, há necessidade de manutenção da Lei nº 9.615, de 24 de Março de 1998, para que não haja lacuna jurídica no arcabouço normativo do direito ao esporte.”
4. Significa este estado de coisas, de um ponto de vista jurídico e político, que se irão viver, no Brasil, momentos de incerteza e insegurança quanto às normas e edifício desportivo. Todos os operadores desportivos não terão a vida facilitada com a vigência formal de duas leis-quadro do “esporte”.
5. Para nós, certos de que tal não se verificará na futura Assembleia da República, fica mais um exemplo a levar a estudo na construção de uma alternativa à actual Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto. Como já amplamente afirmei, em diversos locais e por diferentes formas, somos favoráveis a uma descoloração do pigmento público. Não tenho, contudo, muita esperança no cabeleireiro.
josemeirim@gmail.com