Três reflexões para um futuro incerto

Com a mesma certeza com que rejeitou o Chega, a direita maceitou a Iniciativa Liberal, cujo programa eleitoral é muito mais assustador que o do Chega no plano social.

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Os resultados das últimas eleições obrigam a uma leitura para além da espuma dos resultados. Três reflexões: a não-democracia; o não-nacional; o não-presente.

A não-democracia é o conjunto factores que, não estando sujeitos ao escrutínio democrático, influenciam de modo significativo os processos políticos e, sobretudo, eleitorais. São os elefantes dentro da sala.

O sistema judicial é a causa próxima de algumas crises políticas recentes. É importante averiguar se não estarão a ocorrer em Portugal casos de guerra jurídica (lawfare) à semelhança do que tem ocorrido noutros países. Trata-se do uso do sistema judicial, não para averiguar ilícitos jurídicos, mas para neutralizar adversários políticos. Esta nova arma tem sido utilizada preferencialmente contra políticos de esquerda e assenta no uso político da luta contra a corrupção.

O segundo elefante é a comunicação social. Sem pôr em causa o fundamental serviço público dos media, não podemos deixar de reconhecer que nos últimos vinte anos houve uma viragem à direita no tratamento das notícias e nos comentários políticos. O modo como foi tratado o tema da TAP nos últimos anos e o tema das urgências hospitalares nos últimos meses são exemplares a esse respeito. O repetitivo e espectacularizado esmiuçamento dos casos, mais do que esclarecer os cidadãos, visava desgastar o Governo.

O terceiro elefante são as redes sociais que foram utilizadas sobretudo pelo Chega e pela IL, para criar polarização social, transformando adversários políticos a confrontar em inimigos a destruir. Uma lógica tribal ávida de adesão e avessa à confrontação dos factos cria a voragem da destruição do que está vigente de modo dominante sem curar de saber o que (e como) se deve construir para o substituir.

O não-nacional é a componente dos interesses globalmente organizados que interferem de modo activo nos processos políticos dos diferentes países seleccionados para intervenção em função de estratégias globais. A intervenção nas redes, o financiamento de partidos de extrema-direita ou de ultradireita e de institutos supostamente de investigação, mas, de facto, think tanks e centros de comunicação estratégica são alguns dos mecanismos de interferência. O Atlas Network (anteriormente Atlas Economic Research Foundation) é um dos agentes globais mais conhecidos, uma agência não-governamental baseada nos EUA que “fornece treino, contactos e financiamento a grupos libertários, pró-mercado livre e conservadores em todo o mundo”. A internacional ultraconservadora visa transformar a Europa num aliado incondicional dos EUA, criar o pânico anti-Rússia de modo a justificar os investimentos em armas em detrimento das políticas sociais e ambientais e travar a China.

O não-presente é o modo como a memória de um povo é tratada valorizada ou manipulada para produzir resultados políticos concretos. Em Portugal, essa memória assenta em três pilares, cada um deles com a sua temporalidade. O primeiro pilar é a memória da revolução do 25 de Abril de 1974, cujo quinquagésimo aniversário celebramos este ano. Os portugueses concebem o 25 de Abril como o acto fundador da modernidade em que hoje vivem. Em Portugal, a democracia ainda não é um regime formal emocionalmente neutro ou pragmaticamente descartável. Apesar de todas as suas limitações, avaliar políticos e votar é a manifestação de uma potência existencial que, apesar de muitas vezes frustrada nas expectativas, ainda não se transformou numa frustração colectiva. Estão vivos e activos alguns milhões de portugueses que votaram pela primeira vez em 1976. Essa emoção fundadora tem sido agressivamente manipulada pelo Chega, mas, contraditoriamente, o Chega alimenta-se dela, trazendo para as mesas de votos muitos cidadãos descrentes da democracia. O voto de protesto é um voto tão democrático como os outros. Os empreendedores por detrás dele é que o usam para destruir a democracia.

O segundo pilar da memória dos portugueses é a crise existencial de 2011: a tutela da troika e um governo de direita para quem a austeridade imposta externamente aos trabalhadores e à classe média não era suficiente e devia ser ainda mais agravada por iniciativa própria. Os trabalhadores e os pensionistas, os jovens e os idosos, lembram-se do que então ocorreu. O que correu para o rio da memória não foram apenas os cortes nas pensões, a perda de direitos laborais, a pobreza abrupta e a iniquidade com que o sofrimento foi distribuído entre as diferentes classes sociais. Correu sobretudo a ferida na soberania e na auto-estima de um povo que se libertara do pesadelo colonial para, pouco depois, abraçar o sonho europeu, e que via agora esse sonho convertido num novo pesadelo (muitos se lembram dos termos usados pelos jornais alemães e ingleses para se referir a Portugal e aos portugueses). Era a destruição de uma materialidade muito concreta traduzida no aumento de bem-estar que as classes populares tinham vindo a experimentar apenas há três ou quatro gerações.

As forças de direita estão coladas a essa memória e durante a campanha eleitoral fizeram tudo para a avivar (Passos Coelho na campanha). O retumbante êxito, que estava ao seu alcance, fugiu-lhes. Menos visível por agora é que a direita moderada pensou que ao respeitar a primeira memória (do 25 de Abril) podia desqualificar a memória de 2011. Com a mesma certeza com que rejeitou o Chega, aceitou a Iniciativa Liberal, cujo programa eleitoral é muito mais assustador que o do Chega no plano social. Se o Chega representa a destruição política do 25 de Abril, a IL representa a destruição socioeconómica do 25 de Abril. O seu programa é uma versão do paradigma ultraliberal de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, ridicularizado nos anos de 1930 e reabilitado quarenta anos depois no Chile do ditador Augusto Pinochet (1973). O programa da IL significa a privatização de tudo o que se move e pode dar lucro.

Os dirigentes e eleitores da IL professam a democracia, mas talvez nem se dêem conta de que o seu programa é inaplicável em democracia. Já o mesmo não se pode dizer dos seus mentores. Hayek admitia o colapso da democracia como um dano colateral das suas políticas económicas, cuja implementação era de longe o mais importante. Escreveu ao diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung em 1977 a protestar contra a crítica injusta feita no periódico contra o regime de Pinochet no Chile; considerava o Chile de Pinochet como um milagre político e económico e invectivava contra a Amnistia Internacional, considerando-a “uma arma de difamação da política internacional”.

O terceiro pilar da memória dos portugueses diz respeito ao desempenho do Governo durante a pandemia do coronavírus. Foi um excelente desempenho enquanto uma articulação exemplar entre políticos, profissionais de saúde e cidadãos conscientes da seriedade da emergência de saúde pública. Pouparam-se vidas que noutros mais países mais ricos se perderam. Esta memória foi desvalorizada e o Governo que a tornou possível desbaratou o capital de confiança que granjeara ao não saber compensar adequadamente os enormes sacrifícios do SNS num contexto em que a saúde privada desapareceu como que por encanto. Se o Governo, no dia seguinte a dar por finda a pandemia, tivesse aumentado em 100% os salários de todos os profissionais do SNS, o povo português teria aplaudido de pé. Lamentavelmente, as contas certas não acertaram com o país.

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