A demência, as eleições e o voto que dispensa paternalismos

Se a pessoa com demência quer votar, os acompanhantes podem, por exemplo, ler-lhe as opções no boletim de voto e assinalar a opção, sem ultrapassar a linha que separa a assistência da influência.

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No segundo país mais envelhecido da União Europeia as pessoas com demência têm o mesmo direito de voto que qualquer outra pessoa. E, até prova em contrário, é assim mesmo que se deve manter!

Dados recentes do Eurostat revelam que entre 2012 e 2022 a população portuguesa envelheceu uns extraordinários 4,7 anos. Quase o dobro do conjunto dos 27 Estados-membros, com um crescimento médio de 2,5 anos.

Em Portugal, metade dos residentes tem já mais de 46,8 anos e quem chega aos 65 anos pode esperar viver em média mais 20,3 anos. Contudo, pouco mais de 1/3 desse período será vivido de forma saudável. Na prática, estamos destinados a viver mais anos, mas com mais limitações no funcionamento, deficiência ou incapacidade, isto é, com mais necessidade de apoio e de serviços públicos de protecção, em larga medida assegurados pelo estado social, respeitando os princípios da dignidade e da igualdade.

Por este motivo, o primeiro lugar europeu no rácio de dependência de idosos (beneficiários), face à população em idade activa (contribuintes), não se traduz apenas num preocupante desafio para as finanças públicas. Para muitos adultos mais velhos, e para os que os acompanham (formal ou informalmente), a alteração da realidade demográfica representa também uma profunda inquietação com a potencial perda ou alteração da capacidade de contribuir ou de participar nas mais diversas decisões do dia-a-dia. Resoluções que afectam a própria pessoa e os diferentes sistemas onde esta se encontra inserida.

Infelizmente, a proliferação de instituições residenciais (aumento de 176% nos últimos 20 anos), com serviços padronizados (assistencialistas, focados nas tarefas e na eficiência procedimental), associada às alterações nas estruturas familiares e no perfil dos cuidadores (diminuição da disponibilidade dos cuidados informais), tem contribuído para a estereotipação dos adultos mais velhos, que se transformam em receptores passivos de cuidados. Nesta dependência heteroelegida (heteronomia) perde-se a pessoa por imposição do modelo de cuidados.

Depender da ajuda de alguém já não devia significar, em nenhum momento, abandonar o meu desejo ou a minha vontade: despersonalizar-me. Por outras palavras, a perda de independência não deve nunca ser equiparada à perda da autonomia (possibilidade de escolha). Não obstante, nos diferentes níveis assistenciais, são muitos os cuidadores diariamente impactados pelas necessidades e pelas decisões dos seus entes queridos, frequentemente afectados por perturbações neurocognitivas ou demência. É por isso natural que se encontrem apreensivos acerca das suas competências para participar num processo eleitoral e exercer um voto responsável: presencialmente, por correspondência ou por procuração.

Em muitos países existem mecanismos reguladores, como as directivas antecipadas de vontade ou o estatuto do maior acompanhado, que fornecem enquadramento legal para proteger as pessoas que não têm capacidade para tomar decisões. Mas, se no exemplo de Inglaterra e do País de Gales se encontra claro que estes mecanismos não se aplicam ao voto (in Mental Capacity Act), em Portugal a jurisprudência revela-nos que o tema é omitido na maioria das decisões/sentenças de acompanhamento. Não será por acaso?!

Por um lado, porque a própria Comissão Nacional de Eleições (CNE, 2019) considera que os eleitores ao abrigo do regime jurídico do maior acompanhado "não podem ser eliminados da Base de Dados do Recenseamento Eleitoral, ainda que a sentença consigne a sua incapacidade eleitoral”. Por outro, porque, como qualquer um de nós (cidadãos ou agentes políticos), também os magistrados se vêem confrontados com a heterogeneidade que define o mundo dos adultos mais velhos, reflexo de papéis diversificados e experiências únicas. Uma heterogeneidade que se manifesta nos diferentes percursos da doença (incluindo as perturbações neurocognitivas) ou na diferente receptividade à influência de terceiros, promovida por qualquer inteligência natural ou artificial.

Nesta nova realidade, onde viver mais anos implica conviver com mais diversidade e mais doenças crónicas, não será suficiente esperar ou afirmar que, até prova em contrário, caberá sempre a cada um de nós decidir se queremos votar. Cabe também ao regime democrático melhorar-se e envolver-se no esclarecimento de alternativas, para que as partes interessadas se possam co-responsabilizar e co-decidir numa relação de trocas equilibradas. E este é um bom momento para o fazermos!

Nos 50 anos de democracia, no actual cenário sócio-demográfico e no maior ano eleitoral de sempre, em que cerca de metade da população mundial participará em eleições marcadas em mais de 60 países, pessoas com diferentes necessidades físicas e cognitivas vão voltar a enfrentar barreiras adicionais no momento da ida às urnas. Podemos, pois, empenhar-nos para que os contextos eleitorais se tornem física e humanamente acessíveis, com mais dignidade e menos paternalismo.

Apesar de os acompanhantes estarem impedidos de substituir-se aos beneficiários das medidas no exercício do direito de voto, que é um direito pessoal, podem sempre promover os seus direitos e a sua autonomia, criando condições para que também as pessoas com demência possam, de forma livre e esclarecida, exercer o seu direito de voto.

O objectivo será sempre permitir que o eleitor exprima a sua vontade, na medida em que seja capaz de o fazer. Como tal, se a pessoa com demência manifestar o desejo de votar, os acompanhantes podem ajudar, por exemplo, lendo as opções no boletim de voto e assinalando a escolha do eleitor, sem ultrapassar a linha que separa a assistência da influência à pessoa que está a ser ajudada. Se o eleitor não conseguir exprimir a sua escolha, a questão fica encerrada e o assistente deve promover a conclusão do processo (ou, em eleições múltiplas, passar à escolha seguinte).

Não esqueçamos nós, famílias, organizações e comunidades que, na União Europeia, em 2025, 9,1 milhões de pessoas viverão com demência (aumentando para 14,3 milhões em 2050) e que existem cada vez mais pessoas a precisarem de ser lembradas da data das eleições e de apoio para chegar à secção de voto, mas também que existem sanções penais para prestadores de cuidados que tentam votar duas vezes manipulando um eleitor com perturbação neurocognitiva.

O Democracy Index 2022 (in Economist Intelligence Unit) refere Portugal como uma “democracia com falhas”, sobretudo pela baixa participação e pouca cultura política. Removendo barreiras e promovendo, em confidencialidade, a participação de todos os eleitores, estaremos, não apenas a reforçar um dos pilares do Envelhecimento Activo (propostos pela Organização Mundial da Saúde), mas, sobretudo, a reforçar os valores fundamentais, inscritos no Tratado da União Europeia (art. 2º): “dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de direito e direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias”.

Nota: A Alzheimer Europe e as associações nacionais que a integram, nomeadamente a Alzheimer Portugal, (i) apelam ao público em geral para que assine a sua Call to Action”, por forma a transmitir uma mensagem muito clara aos decisores políticos europeus de que a Demência é uma questão vital para os cidadãos na Europa e (ii) encorajam os candidatos ao Parlamento Europeu a assinarem o Compromisso Europeu para priorizar a Demência – 2024,” comprometendo-se a colaborar com a Alzheimer Europe durante a próxima legislatura.

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