Sónia Rodrigues preserva as tradições do Alto Minho em cabaças pintadas

Em Viana do Castelo, nasceu a Maria Kabaça, uma ode às raízes portuguesas. É às mãos de Sónia Rodrigues que a marca aclama a cultura do Alto Minho através da pintura de cabaças.

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Sónia Rodrigues pintou a primeira cabaça em 2007. Só há quatro anos é que começou a dedicar-se totalmente a esta arte Paulo Pimenta
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Ao contrário dos convencionais pintores e artistas, que recorrem ao papel e aos quadros para materializarem as suas obras, Sónia Rodrigues, de 42 anos, tem como tela um fruto, a cabaça. Não é feita de plástico, de papelão ou produzida a partir de barro. É seguramente uma cabaça verdadeira —​ semeada, colhida, seca, limpa e, depois, pintada. Se alguns vêem nas suas formas e texturas um animal ou um recipiente, Sónia viu Maria, a mulher tradicional vianense, conhecida por lavradeira, e decidiu representá-la.

Foi em 2007 que Sónia pintou a sua primeira Maria. Formada em Educação Social, na altura ensinava técnicas artísticas a pessoas analfabetas, que “não estavam habituadas nem familiarizadas com lápis, canetas ou com o contexto de sala de aula”, conta a artista. Sónia adaptou “as circunstâncias às pessoas” e aproveitou-se das vivências destas para que pudessem aprender. “Pu-las a pintar com coisas do seu quotidiano, como as cabaças.” Também Sónia pintou e igualmente aprendeu: descobriu que nestas peças pode preservar e “contar a história” não só das Marias como também dos Maneis de Viana do Castelo.

“No Alto Minho, as cabaças sempre estiveram muito ligadas às lides do campo”, relembra Sónia. Os agricultores usavam-nas como garrafas térmicas para transportarem água e vinho ou como malga para beberem. Por isso, nada melhor do que este objecto, cultivado e aproveitado pelos minhotos, para retratar as raízes deste povo.

Sónia Rodrigues vende as peças através das redes socias Paulo Pimenta
A artista participa em feiras de artesanato e em exposições Paulo Pimenta
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Sónia Rodrigues vende as peças através das redes socias Paulo Pimenta

“Este trabalho nasceu também com Maria: esta mulher empoderada, do campo, com pouco dinheiro, com muitos filhos, que se ocupava das terras e dos bordados e que, ainda assim, andava sempre muito feliz.” Maria é a personagem-tipo de histórias vianenses, que foram transmitidas a Sónia, e que têm vindo a ser esquecidas. Portanto, para que a “riqueza” perpetuada por estas mulheres não fosse silenciada, a artista escolheu caricaturá-las.

Os artigos começaram a ser adorados não só por família e amigos, como também pelos mais curiosos nas feiras de artesanato. No início do projecto, a marca, intitulada Amar-te, não revelava muito sobre os materiais usados na confecção das peças. “Será papel? Será barro?”, questionavam. “As pessoas não sabiam muito bem do que eram [feitas]”, diz Sónia. Só quando apresentou a marca como Maria Kabaça é que se começaram a aperceber da particularidade dos artigos. “Existem representações minhotas em vários materiais. O facto de serem cabaças enriquece a peça.”

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A Maria, com o habitual traje vermelho, passou então a ser replicada. Surgiram outras cabaças-mulheres, ora com vestido de noiva, ora com um traje preto —​ as mordomas —, ou com um azul, adornadas com os corações de Viana e com os lenços minhotos. Os Maneis têm agora concertinas, jarros, canecas de vinho e outros até se casaram. Sónia deu vida a José, Maria e ao menino Jesus, a mochos, a galos de Barcelos, a Frida Kahlo, a Santa Marta, a Santiago de Compostela, a Manuela Machado e a tantas outras centenas de cabaças.

O tempo mostrou a Sónia isto mesmo —​ que é capaz de pintar as mais diversas personagens de Portugal e do mundo. Porém, até que a artista consiga adornar estes frutos, a cabaça ainda tem de fazer um longo caminho. Depois de colhida, passa por um processo de seca, que demora cerca de um ano. A secagem não é feita de qualquer forma: as cabaças têm de ficar penduradas a apanhar sol e vento, longe do solo para não apodrecerem. “Só quando as sementes cantarem é que sabemos que está seca por fora e por dentro”, esclarece Sónia. Aí, são lavadas e limpas de modo a não apresentarem manchas nem outras marcas de desgaste.

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Sónia já pintou diversas personagens, mas a Maria é a figura principal deste projeto Paulo Pimenta

Quando chegam ao ateliê de Sónia, os frutos podem ou não vir já com as cores primárias aplicadas — dependendo do número de encomendas e da ajuda que a artista tem. Seguem-se os detalhes, os acessórios e as palavras de cada peça, que são feitos exclusivamente por Sónia. Uma cabaça “maiorzinha” custa-lhe cerca de dez horas de trabalho. Se tiver de pintar, de forma idêntica, um número avultado de frutos mais pequenos, consegue completar 35 por dia, através de um sistema de pintura “mais mecanizado”.

Estas tarefas começaram a preencher o dia-a-dia da artista desde que, há quatro anos, decidiu deixar para trás um trabalho dito “habitual” para se dedicar completamente aos seus bonecos.

Sónia não pinta só por pintar e não deixa apenas que seja a criatividade a guiá-la. Se queremos contar uma “história, esta tem de ser fidedigna”, menciona. Isto quer dizer que por detrás de cada peça há pesquisa e muita investigação. Para conseguir retratar as várias pessoas, de forma verídica, a artista mergulha na identidade de quem quer espelhar nas cabaças. Não se cinge a uma fotografia: tem de perceber quem é a pessoa, que personalidade a caracteriza, que expressões a identificam, como existe ou existiu. Sónia recorre a documentários e a livros. “Existe todo um estudo para se saber se era alta, baixa, de que cor tinha o cabelo, como estava arranjado”, adiciona.

Depois, Sónia escolhe a cabaça. E não é qualquer uma — selecciona aquela que melhor faz transparecer a pessoa que a artista vai recriar. Cada “cabaça é única” e, portanto, cada peça é irreplicável.

As cabaças podem ser adquiridas através dos perfis da Maria Kabaça no Facebook ou no Instagram, como também podem ser compradas em certos pontos de venda em Viana do Castelo, em Ponte de Lima, no Porto, em Monção, Melgaço e noutras cidades. Os preços variam em função do tamanho de cada peça, começando nos dez euros.

Texto editado por Sandra Silva Costa

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