Por favor, parem de estragar sopa (e tinta)

A paixão pelo arremesso de fluidos, desde a sopa à tinta, é o que marca uma agenda com um leque de opções para tornar o protesto num momento cívico e original, mas escolhe resumir-se a delinquência

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Megafone P3: Por favor, parem de estragar sopa (e tinta) Nelson Garrido
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Anda-se a falar muito dos cinquenta anos do 25 de abril e de termos de honrar o sonho democrático que esse dia marcou. Quero exaltar a execução da revolução. A irreverência e originalidade do cravo, símbolo incontornável desse dia, são claras num ambiente que facilmente poderia ter sido substituído por conflito e caos. O uso de cravos deu uma essência única ao dia, que poucas formas de protesto procuram replicar. Foi eficaz, ficou na memória.

Dar de comer a pinturas tem sido vista como uma forma interessante de protesto climático. A paixão pelo arremesso de fluidos, desde a sopa à tinta, é o que marca uma agenda que tem todo um leque de opções para tornar o protesto num momento cívico e original, mas escolhe resumir-se a atos de delinquência, muitas vezes contra alvos que nada têm a ver com o problema em questão.

Indicar a urgência de resolução da causa ou problema para justificar atirar sopa a um quadro que nada tem a ver com a causa, só revela infantilidade e a incapacidade de procurar trabalhar em melhores alternativas. À luz disto, até o corte de estradas parece mais adequado à causa, ainda que igualmente idiota. No fim quem sofre é o Monet, o Da Vinci e o Van Gogh, que nenhuma responsabilidade têm sobre o estado das coisas neste campo.

A Revolução dos Cravos é a prova que boas ideias são ouvidas e mobilizam pessoas. O uso do cravo foi eficaz porque o que se espera numa insurgência a uma ditadura é sangue e turbulência. A subversão de expectativas ganhou a nota de irreverência e novidade que acredito que os protestos da sopa procuram atingir, sem a resistência da má opinião pública.

A agenda climática é de facto importante, e não tenho dúvidas que tenha muitos apoiantes (eu sou um deles) e causas com mérito, mas são obscurecidas por estes distúrbios na ordem civil que apenas contribuem para que as pessoas colem o tema a radicalismos. É contraproducente procurar mudança por mobilização da sociedade, e depois criar situações que não ajudam a essa adesão.

Sempre fui muito avesso à ideia de protestos de pessoas apenas a andar por ruas a entoar berros ensaiados, pois com engenho há formas mais engraçadas e diferentes de passar uma mensagem que seja ouvida. O mediatismo não se atinge só pelo choque e dissabor, mas também é alcançável pela apresentação de ideias originais e até divertidas.

As ideias tanto podem ser esforços colaborativos, por exemplo, a convidar a população a vir ao Rossio colocar uma garrafa de plástico em contentores que se arranjaram para alertar ao excesso de resíduos que produzimos, uma marcha em que os fatos são todos feitos de material claramente reciclado, entre muitas outras possíveis ideias. Em suma, coligar o protesto com a irreverência positiva, com a arte ou a ciência, de uma forma convidativa, que cause ao espanto e sensibilize o cidadão para a causa. Dá mais trabalho que ensopar um quadro ou bloquear uma estrada, exige mais criatividade e paciência, mas terá retornos a longo prazo mais produtivos.

Uma causa tão abrangente como a climática não pode viver de momentos mediáticos pela negativa, esperando que o mundo mude de um dia para o outro. Nem os intervenientes da causa viverão satisfeitos com os resultados, nem a restante sociedade irá aderir. A mudança faz-se através de pequenas lutas que visem ganhar objetivos alcançáveis para vencer a grande batalha. Procure-se estudar a hipótese de fazer florescer iniciativas que incentivem as pessoas a olhar, pensar e colaborar, não enfiando goela abaixo medos e urgências através de sopa enlatada. A sociedade agradece e menos sopa se estraga.

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