Tiremos a Borgonha da nossa boca, sem vergonha

O leitor Paulo Silva, “apreciador de vinho, irritado por natureza, merceeiro”, lamenta que se esteja “a matar a identidade de Portugal”.

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Nelson Garrido .
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É efémero e pouco assertivo quando não escrevemos numa folha em branco como o estou a fazer agora, com a minha mão e com a minha alma. Há muito tempo que deixei de escrever e dissertar sobre temas que me irritam, mas não pela maturidade que ainda não tenho. Gosto de ser enfant terrible.

Sempre fui, e sou, o maior defensor da minha opinião. Teimoso, é o que me chamam. Tenho tentado moderar-me, escrevendo menos e utilizando outros métodos de controlo de pressão interna, mais mundanos do que a elevação da escrita.

Deixei de ser blogger há mais de 15 anos. Nos últimos anos, o WhatsApp tomou posse enquanto local de debate das nossas irritações vínicas. Felizmente, não tenho vícios de Facebook, na minha opinião, a pior das tertúlias vínicas. No Instagram, criei uma conta "pirata" durante a pandemia, o Vírus do Vinho, que me ajudou a desabafar. Era eno-humor assumido. Espero ter sido divertido para
quem seguia aquela estupidez.

Quem me conhece sabe que “discuto” com alguma facilidade, principalmente porque gosto de ouvir opiniões e criar conhecimento. A discussão, o debate, a partilha de ideias são fundamentais para a evolução. Aprendo muito a discutir. Agora, decido escrever para o vosso endereço, acerca do seguinte drama: tiremos a Borgonha da nossa boca, sem vergonha!

É um facto que temos regiões vinícolas de excelência, e também é facto que produzimos alguns (poucos) grandes vinhos de nível mundial. São vinhos portugueses, maioritariamente feitos com castas tradicionais portuguesas e em regiões tradicionais portuguesas. A qualidade está ligeiramente concentrada na Bairrada, Douro e Dão, talvez porque tenham sido as regiões que preservaram
mais carácter e identidade própria (com o devido respeito pelo Alentejo e Vinhos Verdes).

Como todos sabemos, os media, jornalistas, críticos e revistas especializadas que promovem Portugal fazem tudo o que estiver ao seu alcance para enaltecer os grandes produtores de vinhos deste país. Mas também são estes mesmos jornalistas e influencers e muitos pseudo-importantes das redes que estão a matar a identidade de Portugal.

Têm todos a Borgonha na boca. Muitos deles nunca pisaram sequer um bocadinho de terra na região francesa. Não é uma crítica, é uma constatação, pois aparentemente ninguém precisa de ir à Borgonha para saber e falar dela. Hoje em dia não é preciso ser, basta parecer.

Tive a oportunidade de visitar alguns produtores da Borgonha, tendo saído com felicidade e com a sensação de que estive numa região única, com identidade. Também já tive a felicidade de visitar o Douro, uma região única, com identidade. Saí de lá com o mesmo sentimento. Porra! Que região mais fantástica.

A mesma situação ocorreu no Dão, na Bairrada, em Espanha, em Itália… Não se deve criticar, visitar uma região ou um produtor a pensar noutro. A isso chama-se comparação, não caracterização. Seria promíscuo, seria falso, seria pouco respeitador para quem vive e trabalha nessa região.

Imaginemos chegar a Piemonte, provar um Nebbiolo e dizer ao adegueiro “Scusa, este tinto é de classe mundial, faz-me mesmo lembrar um tinto do Mário Sérgio!”. Escusado será descrever a cara do italiano ao ouvir tal observação.

Nós não podemos ter vergonha de quem somos, aliás, foi esta nossa “portugalidade” que nos colocou onde estamos. Temos reconhecimento. Somos reconhecidos mundialmente pelas nossas castas, pelos nomes difíceis de pronunciar e pelo sabor dos nossos vinhos. Os nossos vinhos sabem ao sítio de onde nascem, Portugal. É preciso defender o que é nosso.

Depois de aqui chegarmos, estamos agora a tentar colar rótulos… chamando Borgonha a tudo. Inúmeros artigos na imprensa apregoam e comparam muitos vinhos de Portugal — talvez só por serem mais finos e bem feitos — com os vinhos da Borgonha. Produtores que se dizem borgonheses do Mediterrâneo, alguns que até têm parcelas que dão vinhos iguais a Musigny. Musigny!

Uma quadra para terminar:

"Não tenhas a Borgonha na boca"

Vamos devolver a Borgonha a Portugal.
Borgonha isto, Borgonha aquilo.
Somos todos Borgonha.
Ser bom é ser Borgonha. Que vergonha.

Paulo Silva, apreciador de vinho, irritado por natureza, merceeiro

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