O desdém de Navalny

Para Alexei Navalny, o riso e o desprezo foram armas de eleição para contestar o atual regime político da Rússia.

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Testemunha de terror político e vítima de perseguição, Hannah Arendt constatou que, ao contrário da opinião comum, o verdadeiro inimigo da autoridade não é a violência, mas o desprezo. E o melhor aliado do desprezo é o riso.

Para Alexei Navalny, o riso e o desprezo foram armas de eleição para contestar o atual regime político da Rússia, também porque lhe restavam poucos outros instrumentos. O desprezo surgia como resposta à incapacidade de participar efetivamente como igual na política do seu país. Após uma carreira de sete anos no partido político Yabloko, no início do século XXI, Navalny aliou-se a alguns partidos ligados ao nacionalismo russo, uma opção que muitas vezes suscitou dúvidas sobre as ideias que defenderia, caso chegasse ao poder. No entanto, essa hipótese nunca se concretizou, uma vez que o regime político da Rússia enraizava-se no poder, em 2012, e placava a contestação popular.

Foi neste contexto que Navalny se tornou uma figura de oposição destemida. Intentou lutar contra as autoridades russas vigentes por via do desdém e riso, que tanto o singularizava. Através do Youtube e do seu blogue Livejournal, expunha o rol de esquemas que facilitavam o enriquecimento ilícito de determinadas elites na Rússia em conjunto com os respetivos métodos ilegais utilizados para manter o poder. Tornou-se, portanto, uma figura popular incontornável, aquando da tentativa de reeleição de Putin, entre 2011 e 2012. Alvo de perseguição crescente, Navalny tentou candidatar-se à presidência da câmara de Moscovo, em 2013, opção negada através de processos judiciais que lhe foram movidos por entidades estatais em meses subsequentes. Procurou ainda ser candidato à presidência russa em 2018, mas novamente decisões judiciais impediram a apresentação oficial da sua candidatura. Putin, inevitavelmente, foi de novo reeleito, desta vez para um quarto mandato.

Enquanto a visibilidade de Navalny aumentava e os seus canais de media desmontavam a corrupção, frequentemente no tom jocoso que tanto o caracterizava, as restrições à sua liberdade não se cingiriam à arbitrariedade da mera admoestação judicial. O regime não respondia da mesma forma; não ironizava com o que era difícil de ironizar. Endurecia as respostas face ao atrevimento de Navalny. Este foi então envenenado com novichok, em 2020, num avião que seguia de Tomsk para Moscovo. Tratou-se da mesma substância aplicada ao antigo espião Sergei Skripal e à sua filha, Yulia Skripal, em Salisbury, no Reino Unido, em 2018.

Depois de sobreviver ao envenenamento, Navalny não se inibiu de continuar a demonstrar o seu desdém contra quem o tentara assassinar. Com o auxílio de outros meios de comunicação, dissimulou a própria identidade para filmar a sua conversa telefónica com um dos alegados responsáveis pela tentativa de assassínio de que foi alvo. O jornalista que o auxiliou nessa revelação mal escondeu o sorriso, perante a revelação do suposto responsável. A tentativa de assassinato parecia agora menos diabólica do que tragicómica.

Depois de convalescer na Alemanha, Navalny regressou à Rússia, no início de 2021. Questionado sobre se continuaria as suas investigações, Navalny afirmou que sim, pois era precisamente esse o motivo para o seu regresso. Foi preso à chegada. Morreu quase três anos depois, com apenas 47 anos, encarcerado na Sibéria, a quase 1500 km de Moscovo; porém, o riso e o sarcasmo permanecerão para sempre ligados ao seu legado.

Depondo online para um longínquo tribunal, poucas horas antes da sua morte, Navalny troçava do juiz, solicitando-lhe dinheiro para pagar as alegadas coimas que lhe pretendiam aplicar, enquanto permanecia preso. Fica para a história a coragem e o desdém com que Alexei Navalny enfrentou o regime que lhe retirou a liberdade.

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