Quem foi Alexei Navalny?

Morreu Alexei Navalny. O PÚBLICO divulga o 1.º capítulo da biografia Navalny — O Grande Opositor de Putin, de Jan Matti Dollbaum, Morvan Lallouet e Ben Noble, editada em Portugal em 2023.

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Alexei Navalny a ser detido por agentes da polícia russa durante um comício da oposição no centro de Moscovo, Rússia, 26 de Março de 2017 EPA/EVGENY FELDMAN FOR NAVALNY'S CAMPAIGN HANDOUT
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“Não tem medo?”

Alexei Navalny enfrenta esta questão ao embarcar no voo DP936 da Pobeda [“Vitória”] Airlines no Aeroporto de Berlim-Brandemburgo. É domingo, 17 de janeiro de 2021.

O avião está cheio de jornalistas ansiosos por acompanhar Navalny — ativista anticorrupção e político da oposição, 44 anos — na sua viagem de regresso a casa. Quando entra na cabina com a mulher, o advogado e o assessor de imprensa, depara-se-lhe um mar de smartphones erguidos para captar e transmitir em direto o momento. O mundo está de olhos postos nele.

Navalny mostra-se animado e otimista. Mas há claramente motivos para sentir medo. A polícia russa já avisara que ele seria detido aquando do seu regresso à Rússia: estava acusado de violar as condições de liberdade condicional por uma condenação por fraude, em 2014. Enfrentava vários anos de prisão.

Era um milagre que Navalny fosse sequer capaz de caminhar até um avião. A última vez em que embarcara sozinho num voo fora em Tomsk, na Sibéria, em 20 de agosto de 2020, para o que deveria ter sido uma viagem de rotina de regresso a Moscovo. Tinha andado a investigar os negócios de figuras poderosas em Tomsk. Também estivera a fazer campanha com forças da oposição no período que antecedeu as eleições regionais e locais de 13 de setembro — escrutínios em que esperava obter vitórias contra candidatos apoiados pelas autoridades.

Durante o voo, porém, as coisas começaram a correr mal. Navalny adoeceu e acabou por uivar com o que parecia uma dor lancinante. Segundo um dos passageiros, Navalny “não dizia nenhuma palavra, só gritava”. Uma hospedeira de bordo perguntou se havia algum profissional médico a bordo. Uma enfermeira apresentou-se. Juntamente com a tripulação, administrou primeiros socorros e tentou manter Navalny consciente.

O piloto decidiu fazer uma aterragem de emergência em Omsk — cerca de 750 quilómetros a oeste de Tomsk, mas ainda na Sibéria —, apesar de uma misteriosa ameaça de bomba no aeroporto. Navalny foi transportado para fora do avião numa maca e levado de ambulância para as urgências.

A assessora de imprensa de Navalny, Kira Yarmysh, disse que a única coisa que Navalny tinha comido ou bebido naquele dia fora chá preto de uma chávena de plástico no aeroporto antes do voo — e que aquela bebida poderia conter veneno. Navalny era, ao que parecia, um homem em forma, sem problemas de saúde conhecidos, que não fumava e bebia pouco: não se tratava do perfil de alguém suscetível de adoecer de um momento para o outro.

O receio de Yarmysh era preocupantemente familiar para aqueles que seguiam a política russa. No passado, personalidades críticas do Kremlin tinham adoecido sob suspeitas de envenenamento. Ao mesmo tempo, Navalny fizera muitos inimigos com as suas investigações acerca da corrupção das elites: empresários, políticos locais, altos funcionários. A lista de potenciais suspeitos era longa.

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Alexei e Yulia Navalny antes de viagem entre Berlim e Moscovo, a 17 de Janeiro de 2021 EPA/ALEXEI NAVALNY INSTAGRAM

Veio a público que, à chegada ao hospital, Navalny recebera um diagnóstico preliminar de “intoxicação psicodisléptica aguda”. Foi ligado a um ventilador, posto em coma induzido e medicado com atropina. O seu estado foi descrito como “grave, mas estável”. Os procedimentos médicos estavam a seguir o seu curso.

Então, deu-se uma reviravolta.

O hospital começou a encher-se de agentes policiais, alguns à paisana. E, segundo Yarmysh, desataram a confiscar os pertences de Navalny.

Quando o avião em que vinha Navalny finalmente chegou a Moscovo, a polícia estava à espera para entrar no aparelho. Os agentes instruíram os passageiros que tinham estado perto de Navalny a permanecerem sentados enquanto os outros desembarcavam. Para um passageiro, foi motivo para perplexidade: “Naquela altura, o caso não parecia suspeito… [No entanto,] a polícia pensava claramente que o incidente era de natureza criminosa.”

Já em Omsk, a mulher de Navalny, Yulia, enfrentava dificuldades para ver o marido — porque, segundo as autoridades hospitalares, ele não tinha autorizado explicitamente tal visita.

Os médicos passaram a revelar-se menos abertos quanto ao estado de Navalny, e a equipa dele manifestou a vontade de o transferir para a Alemanha a fim de receber tratamento. Em 21 de agosto — ou seja, um dia após a hospitalização de Navalny — aterrou em Omsk um avião pronto para o transportar até ao Hospital Charité de Berlim.

Ivan Zhdanov, um assessor próximo de Navalny, e Yulia Navalnaya também relataram um incidente estranho. Alegaram que, durante uma conversa com o diretor do hospital, uma agente policial disse que “fora descoberta” uma substância perigosa tanto para Navalny como para outras pessoas à sua volta. Mas recusou-se a identificá-la, pois encontrava-se sob “segredo de investigação”.

No mesmo dia, um jornal nacional russo publicou uma história sensacional. Citando fontes anónimas, afirmou que a polícia estivera a seguir Navalny em Tomsk. Teria ele sido envenenado? Segundo o testemunho dessas fontes, não se identificara “nenhum contacto desnecessário ou suspeito que pudesse ser ligado a um eventual envenenamento”. A notícia foi largamente interpretada como uma fuga de informação controlada, com origem no Serviço de Segurança Federal (FSB), desejoso de se distanciar do incidente. Entretanto, os médicos em Omsk reviram o diagnóstico inicial. Agora diziam que Navalny estava a sofrer os efeitos de uma grave perturbação metabólica, não de um envenenamento. O diretor clínico do hospital declarou que essa perturbação “pode ter sido causada por uma queda acentuada do açúcar no sangue, o que levou à perda de consciência”. Os médicos também passaram a dizer que, nas amostras retiradas das mãos e do cabelo de Navalny, se encontrara uma substância industrial comum que poderia ser oriunda de um copo de plástico. No entanto, agora pensavam que o estado de Navalny era “instável” e que não seria aconselhável transportá-lo de avião para a Alemanha.

O médico particular de Navalny encontrou um motivo claro: “Eles estão à espera de que passem três dias para que não haja vestígios de veneno no corpo.” Yulia Navalnaya apelou diretamente a Vladimir Putin para que autorizasse o transporte de Navalny para o estrangeiro.

Após uma resistência inicial, alguns médicos alemães puderam ver Navalny e disseram que o estado dele permitia o transporte de avião até Berlim. E os médicos russos também deram o seu consentimento, declarando que o estado do doente já era “estável”. O avião descolou de Omsk com Navalny em 22 de agosto.

Dois dias após a chegada a Berlim, os médicos alemães disseram acreditar que Navalny tinha sido envenenado com um inibidor da colinesterase, substância que interfere com o sistema nervoso. A origem poderia ter sido um pesticida comum, ou então um agente neurotóxico de uso militar.

A notícia veio alimentar as suspeitas que pesavam sobre o Estado russo.

As autoridades russas rebateram, todavia, as cada vez mais numerosas acusações. “PORQUE o faríamos? E de uma forma tão desajeitada e inconclusiva?”, publicou no Twitter a 24 de agosto um diplomata russo junto da ONU. No início de setembro, o presidente da Duma — a câmara inferior do parlamento russo — alegou que a reação do Ocidente ao “alegado” envenenamento era uma “ação planeada contra a Rússia, a fim de impor novas sanções e travar o desenvolvimento do país”.

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Alexei Navalny morreu aos 47 anos REUTERS/SERGEI KARPUKHIN

Entretanto, as autoridades policiais russas não pareciam ter pressa em investigar o incidente. A polícia regional de transportes — tudo menos um órgão policial de topo — levou a cabo uma “investigação preliminar”.

O hotel onde Navalny tinha ficado em Tomsk foi inspecionado pela polícia e por agentes do FSB, mas a imprensa local veiculou que a operação durou apenas “alguns dias”. Para os assessores de Navalny interrogados pela polícia, tudo apontava para a inação — ou pior, para um encobrimento.

A 2 de setembro, a chanceler alemã Angela Merkel afirmou que “não há dúvidas” do envenenamento de Navalny com um agente neurotóxico do grupo Novichok, descoberta posteriormente confirmada pela Organização para a Proibição de Armas Químicas. Tratava-se do mesmo tipo de agente neurotóxico utilizado contra Sergei e Yulia Skripal em Salisbury, Inglaterra, em março de 2018, ataque que, segundo o governo britânico, tinha “muito provavelmente” sido ordenado pelo presidente Putin.

Tal como sucedera nesse outro episódio de envenenamento, a reação internacional ao caso de Navalny tornou-se cada vez mais audível e crítica do Estado russo. Merkel declarou que o envenenamento levantou “questões muito sérias a que só o governo russo pode — e deve — responder”. Em resposta, as autoridades russas afirmaram que a alegada prova do envenenamento fora encontrada na Alemanha e que, portanto, competia às autoridades alemãs cooperar com a Rússia e apresentar todas as provas.

Além disso, na imprensa russa alinhada com o governo surgiram várias narrativas destinadas a contestar as acusações internacionais. Alguns questionaram se houvera sequer um envenenamento; um jornalista russo escreveu um livro inteiro sobre o tema. Outros disseram que, embora Navalny pudesse ter sido envenenado, não se verificara o uso de Novichok. Foi o que alegou o químico Leonid Rink, que tinha trabalhado no programa Novichok e que, segundo testemunhou, até vendera doses dessa substância a grupos criminosos na década de 1990. Navalny não podia ter sido envenenado por tal agente neurotóxico porque, se assim fosse, argumentava Rink, já estaria morto. Contudo, para outro químico que participara na criação do Novichok, os sintomas de Navalny eram consistentes com um envenenamento por esse agente neurotóxico.

Outra teoria: se bem que pudesse ter sido utilizado, o Novichok não fora administrado na Rússia, mas na Alemanha. Esta versão foi veiculada por Andrei Lugovoy, membro do parlamento russo e principal suspeito do assassínio (em 2006, em Londres) de um antigo agente do FSB, Alexander Litvinenko, com polónio-210.

Em 7 de setembro, Navalny saiu do coma e recuperou de forma incrivelmente rápida. Teve alta do hospital em 23 de setembro, após o que foi para a Floresta Negra concluir a sua reabilitação.

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Uma activista segura um retrato de Navalny durante marcha de apoio ao opositor em São Petersburgo, Rússia, 22 de Dezembro de 2020 Reuters/ANTON VAGANOV

Passaram-se meses. Navalny foi recuperando as forças, flexão a flexão. Longe dali, outros estavam ocupados a investigar o seu envenenamento. Como fora levado a cabo e por quem?

Em 14 de dezembro, o Bellingcat — um coletivo de investigação jornalística na Internet — divulgou as conclusões da investigação realizada com um parceiro russo, The Insider, e em colaboração com a CNN e a Der Spiegel. Navalny fora envenenado por uma equipa de assassinos do FSB, uma “unidade clandestina especializada em substâncias venenosas”, que o seguira durante anos e que possivelmente já o tentara envenenar outras vezes.

Com base na divulgação de registos telefónicos e manifestos de voo, a investigação seguiu os movimentos desses agentes do FSB, que muitas vezes reproduziam misteriosamente os movimentos de Navalny.

Se as coisas se revelaram sensacionais até este ponto, depressa se tornaram surreais. Em 21 de dezembro, Navalny divulgou um vídeo em que figurava uma chamada telefónica ocorrida pouco antes de a investigação do Bellingcat ser revelada. Nela, Navalny falava com alguém que a investigação alegava estar envolvido na tentativa de assassínio: Konstantin Kudryavtsev. Fingindo ser um assistente do antigo diretor do FSB, Navalny conseguiu que Kudryavtsev revelasse pormenores operacionais. O Novichok fora colocado “nas cuecas […] no lado de dentro […] na zona da virilha”, declarou Kudryavtsev.

Choveram ainda mais acusações sobre o Kremlin. Em resposta, Putin ironizou em 17 de dezembro que, se o FSB quisesse matar Navalny, “o trabalho teria sido feito”. Enquanto para alguns isto pareceu tudo menos uma rejeição absoluta da acusação, as autoridades russas negaram veementemente qualquer envolvimento. Mas mostraram pouco interesse em descobrir quem era o responsável. Não se instaurou nenhum processo judicial.

De acordo com um dos seus colaboradores de longa data, Navalny “ficou cada vez mais convencido do envolvimento de Putin no seu envenenamento” e, portanto, “cada vez mais concentrado em expor” o presidente. Além do telefonema com um dos seus alegados envenenadores, isto também significava investigar mais a fundo tanto as alegações da corrupção de Putin quanto a sua alegada riqueza oculta.

E esta foi uma mudança inequívoca da parte de Navalny: segundo um assessor próximo, “o Alexei costumava dizer que, quando escrevemos sobre o Putin, corremos o risco de essa ser a nossa última investigação” — isto é, violariam um limite e incorreriam na ira do presidente.

Em 13 de janeiro de 2021, Navalny anunciou o plano de voltar ao seu país. Disse que nunca questionou se regressaria: não tinha decidido deixar a Rússia, mas acabara na Alemanha na sequência de um atentado à sua vida. Não regressava do exílio; estava simplesmente a concluir a viagem com destino a Moscovo que fora interrompida a 20 de agosto de 2020, em Tomsk.

Depois de passar pela multidão de jornalistas presentes no voo da Pobeda Airlines em 17 de janeiro, Navalny toma o seu lugar, com a mulher ao lado. Enquanto o avião voa para leste, em direção a Moscovo, o casal passa o tempo a assistir a Rick and Morty, uma série de comédia animada americana. O contraste com o peso daquele momento dificilmente poderia ser mais acentuado.

Quem é Alexei Navalny?

O regresso de Navalny à Rússia em janeiro de 2021 foi acompanhado de muitos comentários maniqueístas — de branco contra negro, do bem contra o mal, de Navalny contra Putin. Este guião simplista é comum nos comentários ocidentais sobre a Rússia, uma possível ressaca da lógica política binária da Guerra Fria. Ou então faz parte de uma tradição mais longa, “alterizando” a Rússia como uma sinistra e misteriosa terra onde os ditadores governam sobre massas escravizadas — uma visão moldada pela ideologia, mas também pela ignorância.

Esta narrativa redutora não tardou, no entanto, a deparar-se com problemas. Em janeiro, a Amnistia Internacional declarou Navalny “prisioneiro de consciência”. Porém, algumas semanas mais tarde, a ONG para os direitos humanos decidiu revogar tal decisão, algo que confundiu as pessoas que viam Navalny como um herói imaculado disposto a enfrentar Putin. A decisão da Amnistia Internacional relacionava-se com comentários que Navalny fizera no passado e que a organização concluiu “equivalerem à promoção de ódio que constitui o incitamento à discriminação, à violência ou à hostilidade”.

Além destas avaliações morais genéricas, Navalny estava também a ser comparado a personalidades históricas. A cobertura mediática era temperada por tentativas de comparar Navalny com figuras tanto russas como de outros países. Seria ele o Nelson Mandela ou o Aleksandr Soljenítsin da Rússia moderna?

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Navalny discursa durante uma manifestação da oposição em apoio aos presos políticos em Moscovo, a 29 de Setembro de 2019 EPA/SERGEI ILNITSKY

Mas estas comparações obscurecem mais do que revelam. Navalny é Navalny. E a vontade de encontrar paralelos pode, de facto, revelar a escassez de conhecimento sobre ele fora da Rússia.

A fim de o compreendermos, temos de recuar — brevemente — até ao princípio.

Navalny antes de Navalny

Alexei Navalny nasceu em 4 de junho de 1976 em Butyn, localidade a oeste de Moscovo. O pai era oficial do exército soviético; a mãe, contabilista. Durante a sua juventude, a família de Navalny acompanhou as mudanças frequentes da figura paterna de uma cidade militar para a outra.

Nem todos na família apoiavam sem reservas o sistema soviético. O pai ouvia o Voice of America; a avó odiava Lenine de forma apaixonada. E a família teve a oportunidade de ver em primeira mão uma das maiores falhas do sistema: o pai era originário da Ucrânia, e o jovem Navalny passou a maior parte dos verões na casa da avó, numa aldeia perto de Chernobyl. Deixou de lá ir quando a região se tornou inabitável, em 1986.

Quando a União Soviética colapsou em 1991, Navalny tinha 15 anos. A URSS não lhe deixou muito boas recordações: ao falar dela, recorda sobretudo as filas de espera para obter bens essenciais. Recorda também a hipocrisia dos comunistas encartados: eram quem elogiava o sistema com mais ardor, mas também quem olhava para o Ocidente com mais inveja. Sob todos os ideais, a União Soviética que Navalny conheceu era, na sua opinião, apenas hipocrisia — meramente “esquemas e logros”.

Navalny, portanto, não tinha ilusões sobre o comunismo. Era um fã de rock e assistia a programas de televisão populares que eram críticos do sistema soviético. Tudo isto, afirma Navalny, deu-lhe a sua primeira identidade política. “Aos 17 anos, parecia-me que as minhas opiniões políticas estavam formadas. E proclamava-as orgulhosamente a todos.” Navalny era um liberal.

A palavra “liberal” significa coisas diferentes em diferentes contextos: o seu uso nos Estados Unidos, por exemplo, varia marcadamente do seu significado no Reino Unido. Na Rússia dos anos 90, designava aqueles que procuravam transformar o país numa economia de mercado livre e numa democracia de Estado de direito à ocidental. Os liberais, quaisquer que fossem as suas discordâncias, partilhavam este objetivo básico e eram todos veementemente antissoviéticos.

Os casos concretos revelavam-se mais complicados. Alguns liberais estavam no poder; outros, na oposição. Alguns chamavam a si próprios “liberais”; outros, “democratas”. Alguns eram tecnocratas; outros, intelectuais ou ativistas de base. Alguns favoreciam uma transição gradual para o capitalismo; outros, uma “terapia de choque” radical. Alguns eram democratas de princípios; outros pensavam que a Rússia precisava de uma mão forte para alcançar a transição para a democracia liberal e o capitalismo.

Na juventude, Navalny defendia um liberalismo radical. Apoiou Boris Ieltsin, o primeiro presidente da Rússia, e a sua equipa reformista. Como ele próprio admitiu, Navalny aprovou alto e bom som as reformas económicas de Ieltsin, apesar de todo o sofrimento que infligiram aos membros mais vulneráveis da sociedade. E tinha poucos problemas com as tendências autoritárias do governo de Ieltsin. Porém, mais tarde, viria a lamentar esse apoio e reconheceria que os reformadores tinham lançado as sementes do regime autoritário de Putin.

Em 1993, assim que concluiu o ensino secundário, Navalny entrou na Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN), em Moscovo, depois de quase ter sido admitido na universidade mais prestigiosa do país, a Universidade Estatal de Moscovo. Estudou Direito e a seguir obteve outro diploma, em Comércio de Títulos e Ações. Na RUDN, Navalny afirma ter começado a nutrir dúvidas acerca do liberalismo e a inclinar-se para o nacionalismo.

Nessa altura, os partidos liberais russos já se encontravam em declínio. E parecia a Navalny que o “projeto liberal” já não era apelativo para as pessoas. Porquê? Porque os liberais ao estilo russo eram, para ele, ainda mais liberais socialmente do que os seus homólogos europeus, especialmente no que dizia respeito à questão da imigração.

Se bem que tivesse opiniões políticas fortes e seguisse as notícias, Navalny ainda não era um ativista. Na universidade, as suas prioridades eram “formar-se, encontrar um emprego e enriquecer depressa”. Começou a trabalhar jovem, enquanto ainda estava a estudar. O seu primeiro emprego foi no Banco Aeroflot; depois passou para uma empresa de desenvolvimento imobiliário. “Trabalhar ali mostrou-me como se fazem as coisas por dentro, como se constituem as empresas intermediárias, como circula o dinheiro”, relatou à jornalista Julia Ioffe em 2011.

Na viragem dos anos 90 e na década que se lhes seguiu, Navalny trabalhou como advogado e corretor de valores, mas também criou várias empresas, o que lhe permitiu ganhar somas impossíveis para a maioria dos russos. Em “meses bons”, podia auferir o equivalente a entre 4000 e 5000 euros. E os pais de Navalny também se juntaram às fileiras da nova classe média dos anos 90, tornando-se proprietários de uma fábrica de artigos de vime na região de Moscovo.

Navalny teve uma boa formação e é culto. Todavia, como salientou o escritor Keith Gessen, “não pertence à intelligentsia”. Para começar, os oficiais de carreira militar — à semelhança do pai de Navalny — não são considerados como tal na Rússia. Mas o estilo de Navalny também o distingue:

Navalny é extremamente inteligente, eloquente e até um excelente escritor […], mas não tem essa forma particular de delicadeza, de circunlocução, de excesso de consideração [que está associada à intelligentsia] […] Não há uma profundidade oculta nem um diálogo interno que Navalny, quando fala, esteja a tentar destilar. O que diz é o que pensa; a sua transparência é total.

Ao mesmo tempo, Navalny parece impregnado de um profundo sentimento de certeza moral. Como atestam muitos dos seus slogans. O subtítulo do seu blogue foi em tempos “A batalha final entre o bem e a neutralidade”, e normalmente conclui os seus vídeos no YouTube com a seguinte frase: “Subscreva o nosso canal. Aqui dizemos a verdade.” Após o seu envenenamento em 2020, perguntaram a Navalny: “Onde reside o poder?”, uma citação de culto de um filme russo dos anos 90. Ao que ele respondeu sem hesitar, tal como o herói do filme tinha respondido: “O poder reside, claro, na verdade. Desculpem-me por isto ser tão trivial, mas o poder reside na verdade, e na autoconfiança.”

Navalny é um político. Ao longo dos anos, tem cultivado uma personalidade pública que lembra a dos políticos democráticos de centro-direita ocidentais.

É um homem de família — e bastante tradicional. Embora não frequente igrejas, Navalny é um cristão ortodoxo. É, desde 2000, casado com Yulia Navalnaya (nome de solteira: Abrosimova); conheceram-se alguns anos antes, quando passavam férias na Turquia. Yulia estudou Economia Internacional, mas só trabalhou por pouco tempo, optando por cuidar da vida doméstica e dos dois filhos do casal, Daria (nascida em 2001) e Zakhar (nascida em 2008). Considera-se “esposa de um político” e nunca insinuou quaisquer ambições públicas próprias.

Apesar deste retrato de família tradicional — e do seu professado conservadorismo —, Navalny tem algumas opiniões progressistas que estão longe de ser a posição maioritária. Por exemplo, apoia o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que seria uma medida impopular na Rússia.

Navalny é pragmático e metódico. Os tabloides pró-Kremlin adoram apontar que ele usa roupas de marca caras e que passa férias no estrangeiro. Mas não descobriram muito mais. O seu estilo de vida é deveras superior ao do russo médio, facto de que ele está consciente. Porém, está longe de ser o estilo de vida dos muitos funcionários governamentais que Navalny costuma investigar.

É sagaz, cativante e divertido. No entanto, também é irascível. Muitas vezes, é direto ao ponto de ser brusco. Já participou em inúmeras discussões públicas com jornalistas, antigos aliados e políticos. No mundo da política liberal e dos media moscovitas, mas também muito mais além, trata-se de um homem polarizante.

Uma figura complexa

Navalny é diferente para pessoas diferentes. Para alguns, é um herói democrático, uma figura disposta a fazer frente ao autoritarismo de Putin. Alguns até lhe chamam líder da oposição. Para outros, é um traidor, um agente pago pela CIA que está a trair a pátria. Para outros ainda, é um nacionalista ou um xenófobo.

Basta uma rápida olhadela às palavras e ações de Navalny para se perceber a confusão de algumas pessoas. É um liberal que já fez declarações nacionalistas e até racistas. É um ativista anticorrupção que já foi condenado por desvio de fundos. É um patriota russo que apela a sanções contra autoridades russas. É um democrata convicto que lidera um movimento com mão forte. Navalny quer que a Rússia seja “feliz”, mas ataca os seus oponentes com comentários contundentes e raramente se retrata.

Como Navalny é uma personalidade tão inspiradora quanto complexa, pessoas de diferentes quadrantes projetam nele as suas esperanças, frustrações e suspeitas. Para aqueles que o veem como o futuro da Rússia, o mero peso das expectativas não pode deixar de levar à deceção. E este problema é agravado pela ausência de outras figuras como ele — um político da oposição bem conhecido, carismático e com apetência pelos media num regime que não lida bem com a dissidência.

Como dar sentido a esta complexidade? Vamos contar a história de Alexei Navalny traçando três caminhos: Navalny como ativista anticorrupção; Navalny como político; e Navalny como manifestante. Estas são as dimensões mais importantes da carreira de Navalny quando se avalia o seu lugar na política russa moderna. Mas também olharemos mais longe e discutiremos a relação litigiosa que tem com o Kremlin. Explicaremos como não foi apenas a liderança política russa a influenciar Navalny, mas que Navalny, por sua vez, acabou por moldar o Kremlin.

Este confronto forçou muitas pessoas na Rússia a escolher um lado e a estabelecer prioridades. Alguns defendem que a discussão sobre as declarações controversas de Navalny, por exemplo, tem de esperar. O objetivo primordial agora é derrubar Putin. Nas palavras de Yevgenia Albats, uma das principais jornalistas russas e grande amiga de Navalny: “Estamos de volta à política a preto e branco. Há um império do mal, e há pessoas a lutar por direitos básicos. O Navalny é o líder destas últimas. Depois há os facilitadores do Putin no Ocidente e os colaboradores do Putin na Rússia.”

Dado o estado atual da política russa, o próprio ato de reconhecer complexidade pode ser interpretado politicamente, isto é, como uma tentativa de enfraquecer o apoio a Navalny. E esta é uma acusação lançada pelos apoiantes de Navalny contra os media estatais russos quando estes apontam as páginas mais escuras da sua história.

Quaisquer que sejam as nossas simpatias ou antipatias por este ou aquele aspeto das ideias políticas e da carreira de Navalny, não nos encontramos no campo de batalha da política russa. Com base na nossa experiência de investigação — o nosso trabalho como académicos não russos —, analisaremos alguns matizes, mas sem sugerir que este debate sobre complexidade é a tarefa mais importante no terreno russo.

Porquê concentrar-nos em Navalny?

Alguns analistas da Rússia argumentam que não é preciso compreender de todo Navalny. Que o que importa são as condições estruturais e que Navalny é apenas um produto delas.

De facto, uma série de características desempenharam um forte papel em fazer de Navalny quem ele é. O principal fator é a corrupção. O poder e o dinheiro atraem-se mutuamente em todo o lado. Na Rússia, contudo, a corrupção da elite é central para a forma como Putin se mantém no poder. Os oligarcas dos anos 90 (os super-ricos bem relacionados que costumavam dominar o Estado russo) não desapareceram. Simplesmente passaram de ameaças a estabilizadores do poder. De forma mais geral, a omnipresença da corrupção coloca pessoas como Navalny — com conhecimentos jurídicos e financeiros, e capazes de identificar estruturas complexas de propriedade — numa posição privilegiada para desafiar as autoridades.

A Rússia é rica em recursos e tem uma população altamente qualificada, mas é uma sociedade muito desigual do ponto de vista económico. Impulsionado pelo aumento dos preços do petróleo, o nível de vida melhorou significativamente nos dois primeiros mandatos presidenciais de Putin, mas estagnou a partir de meados da década de 2010. No entanto, a Rússia tem mais de 250 mil milionários, enquanto dezenas de milhões vivem na pobreza. Expor a corrupção flagrante — e os luxos a que muitos funcionários governamentais se entregam — é especialmente eficaz quando a maioria dos cidadãos não pode dar-se ao luxo de ter uma vida decente. Mas as pessoas só podem perturbar o statu quo até certo ponto.

Por um lado, a Rússia tem um sistema político autoritário. A oposição não é totalmente proibida; os partidos da chamada “oposição sistémica” podem participar nas eleições na companhia do partido de Putin, o Rússia Unida. Estes partidos da “oposição” criticam o governo e atraem eleitores descontentes. Mas não desafiam o poder do presidente — e, se se tornarem demasiado contestatários, enfrentam as mesmas barreiras e manipulações que as autoridades usam contra quaisquer outros potenciais opositores.

Para piorar a situação para alguém como Navalny, os russos desconfiam da política em si, ainda mais do que em muitos países ocidentais. Isto é, em parte, uma consequência dos anos 90 na Rússia. A luta política na altura era frequentemente agressiva e pouco construtiva. Os partidos e os políticos pareciam representar poderosos interesses privados — incluindo criminosos — e não o povo. A política tornou-se assim repulsiva para muitos. Ora, no caso improvável de alguém conseguir ultrapassar todos os obstáculos criados pelo Kremlin, continua a ser difícil conquistar a confiança dos eleitores, mesmo que muitos pensem que é extremamente necessário mudar.

Então, em vez de um livro sobre Navalny, não devia este ser um livro sobre corrupção, desigualdade e autoritarismo? De certa forma, é. Traçar a carreira de Navalny como político e ativista permite-nos compreender tudo isto, as coisas que fazem da Rússia de hoje o que ela é. Porém, embora Navalny não fosse Navalny noutro tempo e noutro lugar, ele não é apenas um produto da história do seu país. Para se tornar um sério oponente neste contexto, é necessário coragem, criatividade e inteligência. Navalny tem todas estas qualidades, e é por isso que se destaca. O Kremlin também sabe disso, pelo que, como resultado, se adaptou a Navalny.

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Navalny a sair de um centro de detenção em Moscovo, a 6 de Março de 2015 Reuters/MAXIM SHEMETOV

Certos termos empregados, como “o Kremlin” ou “as autoridades”, são, naturalmente, bastante gerais e podem encobrir a complexidade das instituições políticas russas. Como investigadores, estamos conscientes dos problemas de utilização de termos genéricos que ocultam matizes importantes. Contudo, estes termos podem por vezes fornecer uma abreviatura útil, particularmente nos casos em que os pormenores que negligenciam não são relevantes para o assunto específico em questão.

Quem apoia Navalny?

Há muito tempo que a imprensa próxima do Kremlin argumenta que a importância de Navalny é exagerada no Ocidente — que, na própria Rússia, ele não é assim tão relevante. Será isto confirmado pelos números?

Após o regresso de Navalny à Rússia no início de 2021, o seu índice de aprovação rondava os 20%, com uns sólidos 50% dos inquiridos a reprovar as suas atividades. Mas trata-se de médias para a sociedade russa como um todo. As pessoas entre os 18 e os 24 anos têm uma imagem mais favorável dele: mais de um terço aprova as suas ações.

Em contraste com a idade, a formação dos indivíduos quase não tem relevância. O apoio a Navalny por parte de quem tem um diploma universitário não é muito maior do que o apoio dos não diplomados. E não há praticamente nenhuma diferença entre os residentes das grandes cidades e os das zonas rurais. Portanto, o que os inquéritos à população mostram claramente é que Navalny não é apenas um fenómeno dos centros urbanos russos.

Porém, estes números mudam quando se considera a principal fonte de informação das pessoas. Entre os utilizadores da aplicação Telegram, os que apoiam as atividades de Navalny superam os que não as apoiam, enquanto dois terços dos que assistem principalmente aos canais televisivos controlados pelo Estado as desaprovam.

Muitos críticos do sistema político de Putin afirmam que isto não passa do efeito da propaganda. As pessoas seriam simplesmente vítimas da lavagem cerebral operada pela televisão do Estado, argumentam. Claro que há muita propaganda. Mas há também uma disponibilidade generalizada e genuína para apoiar Putin, além de uma profunda desconfiança em relação àqueles que o desafiam e que perturbam o statu quo. Esta relação entre Putin e os seus apoiantes baseia-se tanto nas emoções como na melhoria — ainda palpável — do nível de vida que coincidiu com a primeira década do reinado de Putin. Precisamente porque não resulta de mera propaganda, esta relação é difícil de destruir por parte de qualquer adversário.

No entanto, foi exatamente isso que Navalny procurou fazer, concentrando-se na corrupção como a causa que poderia minar o apoio de Putin e construir a maior coligação possível contra ele. É uma mensagem simples, mas não passa de uma das várias dimensões de uma figura política complexa.

Um avião sobre Moscovo

O voo DP936 começa a descer em direção ao Aeroporto de Vnukovo, em Moscovo. Os apoiantes de Navalny reuniram-se aos milhares, mas a polícia de choque também apareceu.

O piloto faz um anúncio: o avião não pode aterrar em Vnukovo como previsto, devido a “dificuldades técnicas”. Em vez disso, o avião aterrará no Aeroporto de Sheremetyevo, “onde o tempo está ótimo!”, acrescenta o piloto, divertido.

As câmaras permanecem voltadas para Navalny enquanto ele desembarca e se dirige para o terminal. Depois de as autoridades o terem acusado de violar a liberdade condicional, o que se segue parece inevitável. No controlo de passaportes, Navalny é detido.

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Reuters/DENIS SINYAKOV

Levam-no para uma prisão a norte de Moscovo. No dia seguinte, é marcada uma audiência judicial improvisada numa esquadra. O advogado de Navalny é notificado apenas duas horas antes. Navalny descreve todo o processo como “um absurdo espantoso”.

O tribunal coloca-o em prisão preventiva antes de uma audiência marcada para 2 de fevereiro. Nessa data, um juiz decidirá se a pena suspensa para a sua condenação por fraude em 2014 — no âmbito do chamado Caso Yves Rocher — deve ser convertida em tempo efetivo atrás das grades.

“Não tenho medo”

Navalny estava agora à mercê do Estado russo.

Antes de chegar ao controlo de passaportes e ser detido, parou e falou em frente do cenário ideal: um enorme cartaz onde figurava o Kremlin e a bandeira russa.

Mantinha o otimismo — e estava de volta à Rússia. “Este é o meu país”; voltar foi “uma escolha minha”: “Este é o melhor dia dos últimos cinco meses para mim. […] Não tenho medo […] e peço-vos que também não tenham medo.”

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