Trump, o camarada da Europa

Parece óbvio que, mais cedo do que tarde, a guerra da Ucrânia se poderá tornar numa questão quase exclusivamente europeia.

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Um currículo invejável. Donald Trump é conhecido, entre tantas coisas, por um ensemble de frases imortais. Vamos a três das mais icónicas? Num comício no Iowa, em janeiro de 2016, Trump achou pertinente dizer que “poderia estar no meio da Quinta Avenida a disparar sobre as pessoas e não perderia eleitores”. É uma plataforma política legítima, como qualquer outra. Por falar em legitimidade, quando se viu a perder a Georgia, nas eleições presidenciais de 2020, Trump disse democraticamente a um secretário de Estado que lhe tinha de “encontrar" 11.780 votos –​ "um voto a mais do que os que temos”. Por fim, visto ter-se falado de democracia, no famigerado dia 06 de janeiro de 2021, onde Trump reuniu milhares de apoiantes num comício para contestar o resultado das eleições, é capaz de ter incitado à insurreição quando exclamou “se não lutarem até à exaustão, deixarão de ter um país”. Momento único que, por conta do consequente ataque ao Capitólio, lhe granjeou o título de único presidente americano a ser destituído duas vezes.

Morte aos free-riders, Trump inclusive? Trump procura sempre superar-se. No passado dia 10 de fevereiro, durante um comício em Conway, na Carolina do Sul, contou uma história sobre um representante de um país NATO que não cumpria os objetivos de despesa com a defesa da Aliança. Um free-rider, portanto. Trump ter-lhe-á dito que “não o protegeria” e que até “encorajaria a Rússia a fazer o que raio quisesse” com ele e com os outros devedores. Segundo Trump, quem não paga é “delinquente”. Por isso, repetiu-lhe “tem de pagar as suas contas”. Sou franco, não gosto do epíteto devedor e também não sou adepto da prática do ficar a dever. Confesso, porém, que desgostaria mais de saber que um grupo paramilitar, por exemplo, o Wagner, tivesse sido encorajado a entrar na sua casa, caro/a leitor/a, por não andar a pagar a totalidade de uma daquelas despesas fixas que todos pagamos.

Mas voltemos a Trump. Não sei se isto é relevante, mas arrisco-me a cometer a inconfidência de que o próprio parece sofrer do mal destes free-riders. Numa investigação com quase dez anos do USA Today, são citadas várias dezenas de dívidas de Trump a prestadores de serviços dos seus resorts e clubes (carpinteiros, lavadores de loiça, pintores, empregados de mesa e corretores de imóveis). Parece que até os próprios advogados que trabalharam para Trump, inclusive nestes casos, o processaram pelo não pagamento dos seus serviços. Talvez free-rider seja um conceito apenas aplicável aos Estados, sobretudo aos europeus, mas em especial àqueles que partilham valores e interesses político-militares.

Trump, o camarada da Europa. Este discurso em Conway, é porventura um dos mais perigosos do Trump 2.0. Contudo, surge ainda num contexto relativamente digerível – não é presidente, ainda nem é oficialmente o candidato do Partido Republicano às eleições presidenciais e estas frases repletas de liberdade poética foram ditas num comício onde frases incendiárias são amiúde repetidas para aquecer as massas. A única, pequeníssima, nuance aqui tem a ver com aquilo que a Casa Branca eloquente e rapidamente fez questão de lembrar: o encorajamento de invasões a aliados próximos ameaça não apenas a economia americana, mas também a sua segurança nacional e a paz mundial. Além disso, em especial por conta da anexação russa da Crimeia, em 2014, os países da NATO comprometeram-se a atingir a meta dos 2% do PIB em defesa até 2024, invertendo uma tendência de cortes desde o fim da Guerra Fria. No ano passado, 11 dos 31 aliados ultrapassavam esse objetivo. Aliás, os próprios EUA (3,5%) perderam a liderança para a Polónia (3,9%).

A Europa precisa de arrepiar caminho, é certo. Parece também óbvio que, mais cedo do que tarde, a guerra da Ucrânia se poderá tornar numa questão quase exclusivamente europeia. É tempo de reabrir, aprofundar e ampliar o pilar europeu da NATO e garantir o apoio dos EUA nesse desiderato. É que a camaradagem de Trump é com uma Europa que não esta. Ele é camarada de outra que está por vir e o pior será quando passar das palavras às ações.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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