Blue Eye Samurai é satisfação sangrenta

Como seria uma série de animação realizada por Quentin Tarantino? A resposta está neste anime da Netflix que não é exactamente um anime.

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Blue Eye Samurai Netflix
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Quando o algoritmo do streaming nos coloca à frente mais um mistério de Harlan Coben falado em polaco, ou mais um programa de renovação de casas (desta vez de férias), é sinal de que já não há ideias originais neste mundo. No mesmo patamar se pode colocar a animação japonesa (anime), com um modelo de produção industrial que faz dela o produto perfeito para o streaming: abundante, redundante e descartável. Nem sempre, claro. Blue Eye Samurai é satisfação sangrenta, como diria Uma Thurman em Kill Bill. A referência ao díptico de vingança de Quentin Tarantino não é gratuita. Se Tarantino fizesse anime, seria assim.

Blue Eye Samurai apareceu-nos à frente no início de Novembro passado como uma das novidades da semana na Netflix – vale sempre a pena ver os trailers, porque pode escapar-nos alguma coisa. Durante dois minutos, naquelas vinhetas justapostas, a série apresentou-se na sua forma mais brutal possível: samurais, vilões invencíveis, vingança, espadas afiadas, sangue, braços e dentes a voar. E na sua forma mais bela possível: cores, coreografia, vozes, sons. Isto não é um apenas anime genérico de porrada e entranhas expostas. É um épico feminista com porrada e entranhas expostas.

O samurai de olhos azuis é uma mulher, Mizu, que nasceu no sítio errado e no século errado. Uma mulher birracial (japonesa e europeia) que não tem lugar no Japão feudal do século XVII, patriarcal e fechado ao mundo, e que, por isso, se esconde atrás de uma máscara masculina (dissimula o peito num pano apertado e usa óculos com lentes coloridas), a de samurai (em rigor, a de “ronin”, um samurai sem mestre). Pode assim cumprir uma vingança pessoal contra um homem branco que será (ou não) o seu pai. Neste Japão, Mizu é infra-humana, é uma bastarda e um demónio.

Para Amber Noizumi, que escreveu Blue Eye Samurai em parceria com o marido Michael Green (autor de, por exemplo, Logan e Blade Runner 2049), há algo de muito pessoal nesta personagem. “A inspiração veio de termos tido uma filha com olhos azuis; chamávamos-lhe a nossa samurai de olhos azuis. Foi a primeira semente da ideia. Depois, sendo eu uma pessoa multirracial, sempre me senti entre dois mundos, e pensei que seria bizarro alguém ter olhos azuis no Japão daquele tempo. Como metastizaria a raiva de uma pessoa marginalizada?”

Um samurai em busca de vingança não é nada de novo. É uma narrativa habitual em manga, no anime, no cinema e na televisão. Menos habitual é o samurai ser uma mulher, mas também não é novo – a “Noiva” de Tarantino é, na sua essência, um samurai. O que é diferente é como tudo em Blue Eye Samurai se conjuga, a atenção ao detalhe nos figurinos, a preocupação com o rigor histórico, da arquitectura à vida social, as paisagens com a cor certa para cada ocasião, a animação que tem um toque de antigo (apesar de ser digital). “Uma pintura em movimento”, era o que estava na cabeça de Jane Wu, a directora de animação. Só não é um anime puro porque não foi feito no Japão: a animação é da responsabilidade do estúdio francês Blue Spirit.

E é tudo falado em inglês, mas não soa estranho, revela-se bem melhor do que as dobragens muitas vezes desastradas do anime industrial. Quase todo o elenco é formado por actores com origens asiáticas, como Maya Erskine, Masi Oka, Randall Park, George Takei, Ming Na ou Cary-Hiroyuki Tagawa; a excepção, claro, é Kenneth Branagh, que cumpre todos os critérios enquanto voz do monstro branco e um dos alvos de vingança da samurai de olhos azuis.

Blue Eye Samurai atinge-nos com a subtileza dos pormenores e a complexidade das personagens e dos temas. Mas também nos acerta com a força bruta das suas cinemáticas sequências de luta. Uma heroína com poderes sobre-humanos a derrotar exércitos inteiros, a lutar com um grupo de elite nos socalcos de uma montanha, um contra um em espaços apertados ou junto ao mar – as lutas foram coreografadas por artistas marciais em “motion capture”. Podia ser cinema de carne e osso, mas ainda bem que não é.

Depois de terminados os oito episódios de Blue Eye Samurai (e haverá mais, porque a série foi um sucesso), o algoritmo da Netflix sugeriu Onimusha, samurais contra zombies da autoria de Takeshi Miike – samurais não são novidade nenhuma para ele, nem zombies. O trailer, que apresenta um samurai com a cara e os maneirismos de Toshiro Mifune (a quintessência do samurai nos filmes de Akira Kurosawa), foi bastante convincente.

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