Alta Velocidade vai mudar para sempre paisagem vitivinícola da Bairrada. Região equaciona pedir indemnização

Projecto de alta velocidade dará uma machadada numa importante e emblemática mancha de vinha da região. Viaduto de 1500 metros de extensão mudará a paisagem onde quatro grandes empresas têm vinhas.

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O presidente da Comissão Vitivinícola da Bairrada diz já ter conhecimento de "negócios que já não se fizeram" por causa do traçado aprovado para o TGV na região Paulo Novais / Lusa
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A Linha de Alta Velocidade (LAV) ferroviária vai cortar ao meio a Bairrada, obrigará a expropriar vários produtores de vinho e alterará significativa e irremediavelmente a paisagem da região vitivinícola, demarcada desde 1979 e com uma área total de 6000 hectares de vinha. Afectará, assim, aquela que é porventura a maior mancha contígua de vinhas na região e um "postal" bairradino. E já está a impor um travão nos novos investimentos. A Comissão Vitivinícola local equaciona, por tudo isso, "posicionar a Bairrada como marca colectiva" que também será lesada com a obra que promete ligação de uma hora e um quarto entre o Porto e Lisboa. E, consequentemente, admite exigir ressarcimento pelos danos causados à imagem da região.

A Infra-Estruturas de Portugal (IP), dona da empreitada, diz que o traçado aprovado — a decisão foi conhecida no final do ano, depois de encerrada a consulta pública — para o Lote B da LAV, o chamado Eixo 4, é aquele que menos afecta as populações e explica que na fase de desenvolvimento do projecto de execução será feito um estudo de impacto socio-económico do qual dependerão as "reais medidas compensatórias" a tomar no futuro. Esse estudo é obrigatório e consta da Declaração de Impacto Ambiental emitida em Novembro.

O Estudo de Impacto Ambiental refere que, ao todo, estão abrangidos 219,7 hectares pelo corredor reservado para a nova LAV, com 400 metros de largura. Isso não quer dizer que toda essa área de vinha terá de ser arrancada. Directamente afectados pela nova linha serão 29,2 hectares de vinha (pouco mais de 10%), espalhada por três concelhos, Oliveira do Bairro, Anadia e Cantanhede. Mas um dos pontos mais polémicos do traçado aprovado, que ficará encaixado entre a A1 e a Linha do Norte e conta 35km dentro da região demarcada, fica na Anadia e é a passagem em viaduto no vale de S. Lourenço do Bairro, onde há vinhas de quatro grandes empresas — Campolargo, Quinta do Encontro (Global Wines), Colinas de S. Lourenço (The Fladgate Partnership) e Quinta da Barzomba (Sogrape).

O vale de S. Lourenço do Bairro, na Anadia, e ao longe a adega do produtor Carlos Campolargo Paulo Novais / Lusa
No vale de S. Lourenço, também conhecido por Vale dos Reis, na Anadia, fica a mancha mais emblemática de vinha contínua da Bairrada Paulo Novais / Lusa
Em S. Lourenço do Bairro, na Bairrada, a Linha de Alta Velocidade implicará construir um viaduto com 1.500 metros de extensão Paulo Novais / Lusa
Para além da adega da Campolargo, na zona onde o TGV está a gerar maior polémica na Bairrada, ficam também vinhas da Global Wines (e neste caso uma adega de autor, na Quinta do Encontro), da Sogrape e da Fladgate Partnership Paulo Novais / Lusa
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O vale de S. Lourenço do Bairro, na Anadia, e ao longe a adega do produtor Carlos Campolargo Paulo Novais / Lusa

"A vinha hoje na região já é difícil de manter porque a Bairrada tem pequenas propriedades. Se algumas das maiores empresas forem afectadas", a preocupação é de que a situação em que alguns desses agentes económicos podem ficar venha a ter um efeito de arrasto sobre a região, explica o presidente da Comissão Vitivinícola da Bairrada (CVB). Para além de um efeito directo na produção, Pedro Soares fala na consequência negativa que a construção da linha de Alta Velocidade terá na paisagem e lamenta que a opção por um viaduto de 1500 metros de comprimento, que afectará directamente 5,7 hectares de vinha, signifique "fazer desaparecer o postal que é o vale de S. Lourenço".

Para além dessas "preocupações mais directas", o responsável tem outros "receios", nomeadamente de que haja uma "alteração dos solos", que levará sempre "anos" a reverter, que ocorram modificações nos "cursos de água no subsolo" e que "alterações de caminhos" e acessos mexam com o "desenho social" do território.

"Passa a poucos metros da minha adega um viaduto de 1.500 metros que também atravessa a minha Vinha da Costa, de um lado ao outro", sublinha Carlos Campolargo, produtor que tem naquela zona a sua adega e um projecto de enoturismo que recebe "umas largas centenas de visitantes por ano". "Mas não é só a minha vinha ou a vinha perdida, é a paisagem perdida, é a Bairrada que fica cortada em duas. O traçado que foi aprovado é o mais nocivo para nós e para as vinhas da Bairrada."

Já para a TFP Wines, a nova unidade de negócios da Fladgate Partnership para os vinhos tranquilos, que nasceu com a aquisição da Ideal Drinks em 2023, estão em causa as vinhas de onde sai, entre outras referências, o conhecido vinho Principal. Com ambição de fazer ali "vinhos que competem com os melhores do mundo", o presidente executivo (CEO) do grupo que detém as marcas de vinho do Porto Taylor's, Croft e Fonseca, Adrian Bridge, questiona: "Imagine Bordéus, ninguém vai passar um TGV dentro de Lafite Rothschild ou de Petrus, ou Vega Sicilia, em Espanha, alguém passaria ali um comboio?"

Falar de vinhos finos, como é o caso, em Bordéus ou na Bairrada, é falar de terroir. E ali, em S. Lourenço do Bairro, esse terroir é único, já que é "atravessado por uma linha de calcário que não existe noutros sítios da região", nota Adrian Bridge. Na Bairrada, a Fladgate detém várias quintas, que perfazem um total de 70 hectares de vinha, sendo que a maior é a das Colinas de São Lourenço, propriedade que fica sobretudo a poente da futura LAV, mas que ainda será apanhada pela ferrovia. O grupo estava "em negociações para comprar pequenas parcelas" ali à volta, mas, com a aprovação do Eixo 4, "isso ficará suspenso". "Não vamos comprar terrenos para daqui a três ou quatro anos estar tudo a ser arrancado para ali se colocar um estaleiro do TGV."

Investimentos a reavaliar

Segundo Pedro Soares, este não é o único investimento que ficou já pelo caminho. Sem querer nomear esta ou aquela empresa, o presidente da CVB diz ter conhecimento de "outros negócios que não se fizeram" por causa da LAV. E mesmo aqueles negócios que ainda estão só na cabeça dos empresários podem ficar comprometidos. No caso da Fladgate, admite Adrian Bridge, "a ideia era investir nas Colinas com projectos de enoturismo, para promover o destino", uma vez que "97% das vendas [dos vinhos que dali saem] são no mercado nacional", em contracorrente com o pendor exportador do grupo (que tem "93% de vendas na exportação"). "Saber onde está a linha afectará este investimento, óbvio. Ninguém vai construir um enoturismo dentro de uma quinta que vai ter obras do TGV durante uma década. É preciso reavaliar."

A Sogrape também tem uma propriedade na rota do TGV, junto à adega da Campolargo. A Quinta da Barzomba representa 15 hectares no universo de 70 que o grupo tem na Bairrada, região onde ainda só comercializa uma referência, o vinho Série Ímpar Sercialinho. "Perderemos essa produção. O traçado corta a vinha a meio. Teremos de abandonar essa propriedade. É uma excelente vinha e em termos de solos a nossa melhor quinta", afirma o administrador executivo da Sogrape, Miguel Pessanha, que, como todos os produtores ouvidos pelo PÚBLICO, lamenta "o dano [que a ferrovia infligirá] à marca colectiva e à imagem da Bairrada".

Tudo indica que o tal viaduto, e ponte sobre a ribeira de S. Lourenço, não obrigará a arrancar vinhas na vizinha Quinta do Encontro. "A linha não passa na nossa propriedade, passa perto", confirmou ao PÚBLICO o CEO da Global Wines, Manuel Pinheiro. Mas, para Adrian Bridge, o receio naquela zona é também o de que os trabalhos de preparação e o próprio estaleiro da obra venham a causar estragos consideráveis.

IP afastou traçado das adegas

Cândida Castro, técnica da Direcção de Engenharia e Ambiente da IP e coordenadora do dossiê da Alta Velocidade na empresa pública, esclareceu, ao PÚBLICO, esta e outras questões. Começando por aquele vale "postal", explica a engenheira agrónoma que, fruto do procedimento de consulta pública, o traçado do Eixo 4 até foi melhorado nos últimos meses, de forma a reduzir o impacto na actividade vitivinícola e de enoturismo em S. Lourenço do Bairro.

O viaduto — preferível à solução aterro por ocupar apenas a largura da plataforma, 14 metros, por oposição a uma largura média de 50 metros, para os mesmos 1500 metros — foi desviado e "fica hoje a 207 metros" da adega da Campolargo, quando "no passado ficava mais próximo" do edifício. Por outro lado, passará nas traseiras da Quinta do Encontro, cuja adega de autor é um edifício emblemático na Bairrada e tem uma varanda voltada a Nascente.

Acresce, explicou também o quadro da IP, que, mesmo depois da expropriação, os proprietários poderão circular por baixo do viaduto. "Por baixo dos viadutos, a linha não é vedada. No Alentejo estamos a fazer uma linha com as mesmas características, a nova ligação Évora-Elvas, e a circulação não é vedada, precisamente para não criar um efeito barreira."

"Tínhamos um aterro onde a via ficava lá em cima, a uns 20 metros de altura na zona da ribeira, e transformámos esse aterro num viaduto, que permite a circulação franca e livre de pessoas e máquinas", compara Cândida Castro, que recorda que tudo isto foi explicado aos munícipes e aos produtores de vinho do concelho da Anadia, numa sessão de esclarecimento extraordinária, depois de o município ter rejeitado completamente o traçado do Eixo 4.

Alternativa afectaria habitações

Para "robustecer o estudo" e demonstrar que, embora existissem alternativas, essas alternativas "prejudicariam mais os munícipes" da Anadia, foi estudada a chamada Variante da Anadia (o traçado mais à esquerda na infografia do PÚBLICO; enquanto à direita do Eixo 4, está o Eixo 5, o terceiro traçado estudado nos últimos meses). Essa alternativa "afectaria directamente 20 habitações", enquanto o traçado eleito só "apanha sete casas de habitação". Só na Anadia seria oito fogos, ao passo que na linha que vingou nenhuma habitação será varrida pelo comboio. Quer na Variante da Anadia, quer no Eixo 5, há "povoações que seriam bastante afectadas", insiste a técnica da IP, para quem escolher entre sacrificar vinha ou habitações não é verdadeiramente uma escolha.

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Em Ancas, ligeiramente a norte de S. Lourenço do Bairro, uma zona essencialmente florestal, também haverá vinhas afectadas. Uma delas é da Quinta das Bágeiras. Mário Sérgio Nuno comprou no último ano vinha que há muito namorava, para poder aumentar a produção do seu Pai Abel branco. E agora fala em sorte, porque nas vinhas que estão há mais tempo nas suas mãos poderá vir a sofrer um corte. "Se cortar, não será muito. Mas passará encostadinha à minha vinha velha. Terei vinhas de um lado e do outro da linha. Quem nos visita vem sobretudo à adega mas também gosta de ir ver as vinhas, cada vez mais. E, mesmo que não apanhe as vinhas, ficarei com um corte na paisagem. É complicado." E será sempre, ainda que naquela zona esteja previsto a linha seguir em aterro e escavação, ou seja, ficará parcialmente 'enterrada'.

Em relação à preocupação com a eventual ocupação de terreno pelos estaleiros de frente de obra, Cândida Castro é peremptória: "Ninguém vai destruir uma vinha para instalar um estaleiro, muito menos numa região demarcada." Esses estaleiros de proximidade ("existirá sempre um estaleiro central, fora daquela zona") são da responsabilidade do empreiteiro e serão sempre negociados entre este e os proprietários dos terrenos, sendo que "normalmente" acabam por ser montados em terrenos que não estão em uso.

"Qualquer uma das alternativas passaria dentro da região demarcada. Nós começámos este trabalho com base no que já tínhamos feito na primeira década deste século. Estes estudos partiram de uma avaliação que tinha sido feita entre 2005 e 2010, quando havia a RAVE. Incorporámos o que tinha saído das avaliações de impacto ambiental do passado. Fomos ao terreno verificar outra vez o que se passava e tentámos melhorar os traçados e reduzir os impactos que já tinham sido identificados anteriormente", resume a técnica da IP.

Os produtores mais pequenos e os viticultores que possam estar no caminho da LAV deveriam "preocupar mais" a região, comenta a agrónoma, embora se diga convicta de que "não haverá muitas pessoas nessas circunstâncias". "Conhecendo a realidade, de outros tempos, ninguém vive de 5000 metros quadrados de vinha, isso é um rendimento, é um complemento. Não vamos retirar o rendimento base da família a ninguém." Seja qual for a importância dessa actividade, quem for afectado será ressarcido por isso, afiança.

Para o presidente da CVB, essa avaliação deve ser feita "caso a caso" e, nos cálculos para indemnizar os proprietários expropriados, deve ser tido em conta o valor das vinhas: as marcas que lhes estão associadas, os vinhos que produzem, se há enoturismo ou não, etc. E, defende Pedro Soares, talvez fosse boa ideia promover a criação de uma comissão independente que acompanhasse o desenho dessas medidas compensatórias.

Há dias foi lançado o concurso internacional para o primeiro troço da LAV, Porto-Oiã (Lote A). É expectável que o concurso para o Lote B, o troço em causa, seja lançado no Verão. Com as fases que se seguirão, a obra nunca arrancará antes do final de 2025, inícios de 2026.

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