Não quero pagar jornais? Fácil: roubo

Não achamos razoável roubar roupa na Zara, mas achamos normal roubar notícias dos jornais.

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Tenho umas coisas desagradáveis para dizer e, por isso, neste primeiro Coffee break de 2024, vou ser chata, quem sabe moralista — o meu maior pânico.

A primeira: roubar é feio. A segunda: roubar quem precisa é ainda mais feio. A terceira: roubar quando não precisamos de roubar é o pior de tudo.

Hoje li a frase:

— Alguém é assinante do PÚBLICO? Consegues mandar prints de uma notícia?

Podia não ter ligado. Mas como li ou ouvi uma frase igual ontem e anteontem e há um mês e há um ano e há dez anos, deixei de ignorar.

Às vezes são professores universitários. Às vezes são empresários de sucesso. Às vezes são reformados com boas reformas. Às vezes são jovens da classe média. Às vezes são jovens da classe média-alta. Às vezes são políticos. Às vezes são pessoas ricas. Às vezes são altos quadros da função pública.

Todo o tipo de pessoas cujos rendimentos permitem gastar 19 cêntimos diários na assinatura anual de um jornal me pede a versão word de uma notícia que queria ler e não conseguiu porque bateu na paywall. Como quem diz: podes ir aí à Zara roubar aquelas calças azuis que eu gostava de ter, mas que não quero pagar?

Está a ver aquela frase “por cada cigarro que acendes numa vela matas um marinheiro”? Penso que vem do folclore alemão. Diz a lenda que vem da época em que marinheiros vendiam fósforos para terem salário quando não estavam no mar. Acender um cigarro numa vela era menos um fósforo que um marinheiro poderia vender. Sem vender fósforos, o marinheiro não teria dinheiro. Passava fome e, como diz uma amiga, finava-se, falecia e, coitado, a seguir morria.

O mesmo com os livros. Por cada livro pirateado, há um escritor que recebe menos ao fim do mês. Antes do Natal, li na Lusa que um grupo de escritores portugueses lançou uma campanha de sensibilização contra a pirataria de livros. Dizem que há centenas de grupos em aplicações como o Discord, Telegram e WhatsApp, além do Instagram e do Facebook, “onde os livros em ebook circulam livremente”.

Os grupos nascem diariamente e chegam a ter mais de 20 mil utilizadores.

A campanha diz que, “cada vez que se lê ou se partilha uma cópia pirata, está-se a impedir o autor de ser remunerado e de continuar a escrever”. Atrás de cada livro pirateado, há um autor que dedica a sua vida a esse ofício e cujo trabalho deve ser respeitado”. Falam do “impacto incalculável” que as cópias piratas têm no circuito livreiro. Ler um livro pirateado é roubar aos escritores, aos editores e às livrarias.

O mesmo com o cinema. Há uns anos David Lynch deu uma masterclassno no Leffest, no Estoril, e no fim fez um pedido: não pirateiem filmes. Explicou que se pirateassem um filme seu, ele conseguiria fazer o próximo, mas que um jovem realizador não conseguiria.

Lembra-se daquela campanha que passava nas salas de cinema antes de o filme começar? Você não roubaria um carro... uma mala... um televisor... um filme. O download não autorizado é ilegal. A pirataria é crime.

E sim, o mesmo com os jornais. Por cada printscreen, versão word ou outra versão qualquer de uma notícia ou edição de jornal que lê sem pagar, mata um jornalista. É como os marinheiros. Não se vê logo. Mas é isso que se está a fazer.

Tenho um amigo em Nova Iorque que assina o New York Times em papel, mas há anos que nem o abre, prefere ver as notícias no computador e no telefone. Ele diz que é uma questão “política”, de “cidadania”, de “protecção da democracia” e outros chavões — todos verdadeiros e importantes. Quando pisa o risco de ficar pomposo, desmonta: “E é egoísmo puro: não quero que um dia, se o Times morrer, God forbid, alguém diga: ‘E tu, o que fizeste para evitar a sua morte?’”.

Fica a ideia para 2024: assine os jornais de que gosta. Há muitas razões. A mais óbvia é que essa é a melhor forma de evitar que os jornais de que gosta morram.

Há anos que se testam ideias. O micropagamento não resultou. O agregador AppleNews+ tem dez milhões de assinantes, uma gota no oceano de leitores mundiais. E quem quer um Spotify para jornais, onde só ganham os mais populares? O mundo mudou e os jornais têm de se adaptar. É verdade. Mas os leitores também.

O PÚBLICO tem quase 50 mil assinantes (50 mil vezes obrigada). Sem isso a nossa sustentabilidade estava, vamos dizer assim, periclitante. Não vale a pena fazer de conta: sem assinantes não vamos lá.

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