Dez anos de “Dieta Mediterrânica” enquanto património cultural imaterial da humanidade

Aproveite-se este momento de balanço de uma década para pensar de que forma podemos, colectivamente, aproximamo-nos de algumas práticas da “Dieta Mediterrânica”.

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Assinalam-se, neste 4 de Dezembro de 2023, os dez anos da classificação da “Dieta Mediterrânica” enquanto património cultural imaterial da humanidade pela UNESCO. Esta classificação, promovida transnacionalmente pela Espanha, Itália, Grécia, Marrocos, Portugal, Chipre e Croácia, procurava o reconhecimento de consumos alimentares transversais aos países que estariam, por práticas como o respeito pela sazonalidade dos produtos e a predominância de circuitos alimentares curtos – do prado ao prato tendo a comensalidade uma dimensão central na manutenção dos laços e afinidades sociais, ligados à génese da "Dieta Mediterrânica".

Podendo ser abertamente discutida a dimensão geopolítica desta candidatura, que foi apresentada à UNESCO em 2013, pela constatação da ausência de inúmeros outros países mediterrânicos, e considerando igualmente a sub-representatividade de países da margem sul do Mediterrâneo, importa agora, dez anos depois, perceber quais os seus impactos no contexto nacional português. Tendo em conta que actualmente os padrões alimentares em Portugal dificilmente se poderão inscrever nos princípios da "Dieta Mediterrânica", restava-nos ambicionar que esta classificação fosse uma boa oportunidade para pensar e implementar políticas públicas com vista a uma transição alimentar iminente.

Efectivamente, nas últimas décadas, os padrões alimentares em Portugal afastam-se claramente daqueles que constituem o terreno comum das práticas da “Dieta Mediterrânica”. O elevado consumo de carne aumentando quase ininterruptamente desde a década de 1980, tendo sido, em 2022, de 118,5 kg per capita/ano, mais do dobro do que é consumido na Alemanha, por exemplo e o baixo consumo de frutas e legumes, são apenas os exemplos mais evidentes do incipiente vínculo nacional a esta dieta.

Paralelamente, o igualmente elevado consumo de peixe a nível nacional (o terceiro país em volume de consumo à escala mundial: dados de 2020 apontam para 59,9kg per capita/ano) dar-nos-á também que pensar, sobretudo tendo em conta que parte considerável desta porção se traduzirá no menos mediterrânico dos consumos alimentares nacionais: o bacalhau.

Mas se algumas políticas alimentares da última década reflectem a preocupação com a sustentabilidade dos consumos nacionais veja-se por exemplo as restrições à pesca da sardinha, que se iniciaram em 2012, e produziram impactos diversos ao longo do mesmo período outras pecam pela sua inoperância, como o ainda incipiente apoio e incentivo ao cultivo de leguminosas no país, alimento central para uma transição alimentar sustentável, menos dependente das proteínas de origem animal e com menores impactos ambientais.

Tomemos então o património cultural imaterial como algo dinâmico, e já que as práticas e consumos alimentares nacionais se têm pautado por este afastamento relativamente à “Dieta Mediterrânica” tal como ela é concebida, quer na sua dimensão patrimonial, quer na sua dimensão nutricional, aproveite-se então este momento de balanço de uma década para pensar de que forma podemos, colectivamente, aproximamo-nos de algumas práticas da “Dieta Mediterrânica”.

Promover a “Dieta Mediterrânica” enquanto património consagrado pela UNESCO, ao invés de servir apenas para promover restaurantes ou circuitos turísticos, deverá servir um propósito social e político no sentido de democratizar o acesso aos circuitos curtos de produção alimentar, privilegiar política e economicamente os alimentos sazonais e de produção local, e garantir uma transição alimentar justa e acessível, impulsionando, por exemplo, mecanismos para a produção de alternativas ao consumo de proteína animal no território nacional.

Se somos aquilo que comemos, tal como enunciado por Brillat-Savarin em 1826, actuemos para que o futuro nos proporcione comida melhor, local, saudável e acessível a todas/os. Isso sim, será um património cultural que importará celebrar.

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