Violência sexual: o que significa acreditar nas mulheres?

Com enorme probabilidade, uma mulher que denuncia violência sexual está a dizer a verdade. Probabilidades não são certezas, mas devem servir para corrigir pré-julgamentos e enviesamentos sexistas.

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"(...) Tal como a queda de um avião, uma falsa acusação de violação é um acontecimento objetivamente pouco habitual que ocupa um lugar desproporcionado na imaginação pública", escreveu Amia Srinivasan, em O Direito ao Sexo. É uma imagem útil, a que podemos voltar sempre que uma acusação tornada pública catalisa mitos ainda persistentes em torno da violação.

Lembremos as acusações vindas a público em Portugal nos últimos anos e as reações subsequentes: há sempre alguém a atestar a inocência e bom carácter dos homens acusados (ainda que só os conheçam enquanto figuras públicas), afirmando a impossibilidade das alegações. Ou esmiuçando o teor das queixas tornadas públicas e argumentando que tais situações são implausíveis e não correspondem a violações reais (sempre imaginadas como ataques físicos, perpetrados por desconhecidos). É recorrente ouvir-se “ele não precisava [de violar]” quando surgem acusações de violação – como se uma violação fosse produto de uma necessidade sexual impossível de concretizar de outra forma. (O subtexto é aterrador: parece sugerir que há homens que efetivamente precisam.)

O imaginário coletivo é povoado pelas falsas denúncias de crimes sexuais, sobretudo da violação. Existe um fortíssimo enviesamento cultural para desacreditar mulheres, sobretudo quando os homens acusados fogem ao estereótipo do agressor sexual estigmatizado, excluído, monstruoso. Contudo, um debate sério sobre violência sexual obriga a que se destrincem mitos, factos e probabilidades.

Combater mitos e a misoginia que os suporta exige que primeiro se sublinhem os factos: a violência sexual cometida por homens contra mulheres é uma realidade cruelmente comum e normalizada. A esmagadora maioria dos casos de violência sexual não é reportada às autoridades: só uma ínfima parte é denunciada. Ao mesmo tempo, as falsas denúncias de violência sexual – contrariamente ao imaginário popular – são efetivamente baixas.

Com elevadíssima probabilidade, uma mulher que denuncia uma violação está a dizer a verdade. Não porque haja uma predisposição biológica ou sexual para a virtude ou a verdade, tal como não há para a violência sexual: é precisamente por saber que os homens são igualmente capazes de empatia que me recuso a caracterizá-los como bestas, incapazes de distinguir sedução e coação. As mulheres não são por natureza ou inclinação mais virtuosas ou incapazes de mentir. Nunca é demais lembrar: a violência sexual não é sobre virtudes individuais, em primeiro plano – é sobre poder e impunidade. Não é sobre santas, monstros e pecadores. É sobre nós próprios, enquanto coletivo; sobre as nossas estruturas de poder, silenciamento e ocultação.

A razão das reduzidas falsas denúncias reside noutro facto: ao contrário da narrativa dominante, o sistema (judicial e extralegal) não premeia mulheres que reportam violência sexual; pelo contrário, desincentiva-as, desacredita-as, humilha-as reiteradamente. Há muitas razões, e todas justificadas, para permanecer em silêncio, seja por meses ou por muitos anos: o medo do descrédito, da culpabilização, do estigma; a descrença no sistema judicial, o medo de ainda ter de responder por processos de difamação.

Demasiadas vezes, tratamos as mulheres que denunciam violência sexual como criminosas, elas próprias, à partida. Escudamo-nos na presunção de inocência para presumir, coletivamente, que mentem. A presunção de inocência é uma pedra basilar do Estado de Direito: existe para prevenir condenações sem provas sólidas (sendo que nem todas as provas são legalmente admitidas), para além de qualquer dúvida razoável, e garantir que todos temos direito a meios de defesa. Mas a presunção de inocência não pode ser uma mordaça: não é uma prescrição de silêncio imposta às mulheres, impedindo-as de falar e denunciar. A denúncia é um direito – e sempre que desacreditamos uma denúncia na esfera pública estamos a dizer, a todas as mulheres ainda em silêncio, que assim devem permanecer.

Com enorme probabilidade, uma mulher que denuncia violência sexual está a dizer a verdade. Probabilidades e padrões não são certezas, pelo que não chegam para uma acusação ou condenação: a apreciação, sobretudo jurídica, deve ser sempre caso a caso. Mas probabilidades devem servir para corrigir pré-julgamentos e enviesamentos sexistas.

“Acreditem nas mulheres” [believe women] foi um dos slogans promovidos no curso do movimento #MeToo, no contexto norte-americano. Há, como em todos os slogans, múltiplas interpretações; os slogans são, por norma, desprovidos de nuance e a sua força reside na simplificação da mensagem. Na visão de várias autoras, que subscrevo, a mensagem “acreditem nas mulheres” é uma proposta subversiva, mas não dogmática ou acrítica; é, sobretudo, uma proposta corretiva. Não se trata de dizer que devemos acreditar nas mulheres porque são mulheres, mas de combater a norma cultural que desacredita as mulheres precisamente porque são mulheres.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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