Medicina: últimos dias da última profissão romântica?

Mais de 400 vagas para a formação médica especializada ficaram por preencher no recente concurso, correspondendo a cerca de 18% do total. Estes números devem preocupar-nos profundamente.

Ouça este artigo
00:00
02:40

Não bastasse o mapa complexo dos muitos constrangimentos no funcionamento das urgências a marcar o final de Novembro e ainda recebemos números que são, simultaneamente, sintoma e prognóstico: sintoma de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) com problemas estruturais profundos por resolver e de uma geração de médicos em desencanto; também prognóstico muito reservado sobre o futuro desse mesmo SNS, conquista maior da nossa história democrática, que todos precisamos de defender.

De acordo com os dados divulgados pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), mais de 400 vagas para a formação médica especializada ficaram por preencher no recente concurso, correspondendo a cerca de 18% do total. Recorde-se que em 2022 tinham sido 161 as vagas por preencher, quase 8% de todas as disponibilizadas. Estes números devem preocupar-nos profundamente. Sabemos também que 178 das vagas que não foram preenchidas neste concurso pertencem a Lisboa e Vale do Tejo. Mais de metade das vagas para a especialidade de Medicina Interna ficaram sem candidatos, o mesmo acontecendo em cerca de uma em cada quatro vagas para a especialidade de Medicina Geral e Familiar. Estas são as duas especialidades mais abrangentes, revelando-se basilares para o funcionamento dos cuidados hospitalares e dos cuidados de saúde primários, respectivamente.

Num momento de inaudito impasse nas negociações entre Governo e sindicatos médicos, exige-se dos decisores políticos uma reflexão lúcida e franca sobre estes números, reveladores da clara falta de atractividade do SNS para os jovens médicos. Lembremos que após concluírem o mestrado integrado em Medicina, que dura seis anos, os médicos passam por um ano de internato de formação geral, antes de prosseguirem para a formação especializada a que este concurso respeitou e que pode durar mais quatro a seis anos, dependendo da especialidade. Sem a reactivação das carreiras médicas, sem uma efectiva melhoria salarial, sem a flexibilização dos percursos e horários, permitindo conciliar actividades de clínica, docência e investigação, sem existir incentivo à inovação não será possível resgatar o romantismo da profissão médica.

Lembrando o Professor João Cid dos Santos, proeminente cirurgião vascular português, internacionalmente reconhecido, particularmente, pela relevante descoberta da endarterectomia em 1946, “sendo a última profissão romântica, a Medicina será sempre de melhor qualidade, quando praticada por Homens de cultura”. Por isto mesmo, apesar do desalento e da preocupação face ao estado actual do SNS, refuto a hipótese levantada pelo título. Estou certa de que estes médicos que começam em Janeiro os primeiros dias da formação especializada serão também os mesmos que não permitirão que o SNS chegue aos seus últimos.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários