Miss Portugal e a perseguição às pessoas trans

Bem sei que falta informação e que nem sempre é fácil compreendermos realidades que não nos atravessam. Mas eduquemo-nos, procuremos ler e ouvir pessoas trans.

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Perante o desconhecimento sobre uma pessoa ou realidade, devemos abrir a mente e ativar a curiosidade Getty Images/ Rumi Fujishima
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No dia 5 de Outubro, Marina Machete foi anunciada como vencedora do concurso Miss Portugal, e irá competir novamente em Novembro para o lugar de Miss Universo.

Esta notícia — que, contada assim, teria pouco ou nenhum potencial polémico — abriu uma enorme discussão quando, ao mesmo tempo, se informou que a vencedora era também uma mulher trans.

Posso dizer-vos que foi duro ler a quantidade de comentários repletos de ódio, preconceito e ignorância sobre este tema e estas pessoas em várias páginas das redes sociais.

E hoje, aqui, a discussão nem será sobre esta vitória especificamente, nem mesmo sobre a pertinência de ainda existir um concurso que avalia e premeia mulheres a partir de padrões de beleza que continuam a oprimir-nos e a pressionar-nos para a busca de uma suposta perfeição.

A minha proposta aqui e agora é apenas uma: abrirmos a nossa mente e ativarmos a nossa curiosidade!

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Marina Machete é a primeira mulher trans a ser coroada Miss Portugal CONCURSO NACIONAL DE BELEZA

Este tema nunca poderia ser problematizado num único artigo, mas gostava de deixar aqui três factos e três mitos básicos, que redigi com base nos comentários odiosos que li. Afinal de contas, para alguma coisa teriam de servir.

Factos

1. Uma pessoa trans não se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença. Por exemplo: um bebé nasce com uma vulva (sexo biológico) e atribui-se o género feminino. Se esta pessoa, ao crescer, se identificar (identidade de género) com o seu sexo biológico, será uma mulher cisgénero. Se se identificar como homem, será um homem trans. E compreendo que este conceito de “identificar como” possa parecer estranho à maioria porque, na verdade, só teve realmente de deparar-se com ele alguma vez na vida quem não se identifica com o género atribuído à nascença. Mas façamos este exercício de imaginação (farei um exemplo para mulheres, adapte se for homem): lembre-se de si ainda criança; cresceu a sentir-se uma menina. Olhava-se ao espelho e sentia-se uma menina. Cresceu a saber disto, nunca duvidou, porque simplesmente… sente que é e sempre sentiu! No seu íntimo, isto é uma certeza inquestionável, certo? Sabe que é mulher. Até que um dia alguém chega e lhe diz: “Então, mas tu tens X característica física, claro que és um homem!” O que diria? “Não, claro que sou mulher! Sei que sou!” E sabe, não sabe? É isto, geralmente, que acontece com uma pessoa trans, sendo que a característica indicada são os órgãos genitais.

2. A pessoa trans não tem de alterar os órgãos genitais ou outros aspectos do corpo para ser uma pessoa trans. Eu posso ter nascido com uma vulva, mas identificar-me como homem, e querer manter a minha vulva. Não são os meus órgãos genitais que definem a minha identidade de género.

3. Não é uma escolha e, muito menos, uma moda. As pessoas trans têm maior risco de sofrer violência física e sexual. Mesmo comparativamente com pessoas lésbicas, gays ou bis, sofrem mais discriminação social, laboral e no acesso a cuidados de saúde. Entre outubro de 2021 e setembro de 2022, foram assassinadas 327 pessoas trans no mundo, segundo números do Trans Murder Monitoring (TMM). E a sua esperança média de vida é de apenas 35 anos. É muito triste dizer isto, mas fará sentido pensar que alguém escolheria ser trans sabendo que passará por tudo isto? Não me parece.

Mitos

1. “Só existe homem ou mulher porque somos XX ou XY.” É muito comum invocarmos a Biologia para justificarmos os nossos preconceitos e tentarmos manter o mundo como “ele sempre foi”. No entanto, nem mesmo nos cromossomas se encontra uma binariedade. Existem variações como XXY, XYY, apenas X, entre outras. Além disso, a configuração de cromossomas definirá apenas o sexo biológico da pessoa e não a forma como estes se irão expressar na sua vida e na construção da sua identidade, o que já dependerá de toda uma interação biopsicossocial. Por isso, cromossomas e sexo biológico não definem género!

2. “As crianças não precisam desta informação porque vai confundi-las!” Não as confundimos quando explicamos todas as cores, todos os animais, mas confundiremos se falarmos dos vários tipos de pessoas e géneros que existem? Temos medo de confundi-las ou de ameaçar o tal modelo do mundo que queremos à força manter? Ninguém se tornará trans por ter essa informação. (Se assim fosse, não existiriam pessoas trans, porque o mundo só lhes mostrou modelos cisnormativos a vida toda.) No entanto, ter essa informação permitirá uma melhor compreensão e aceitação de si, a prevenção de muitos problemas de saúde mental e até de suicídio, que são mais frequentes neste grupo.

3. “Mas eu tenho direito a expressar a minha opinião!” Não se essa opinião vulnerabiliza ainda mais pessoas que já estão vulneráveis. Não se essa opinião reforça estigmas e preconceitos que desumanizam e colocam ainda mais em risco grupos que já estão em risco. A liberdade de expressão não é um princípio intocável. Se ela vai contra a vida, os direitos e a existência do outro, ela não é liberdade de expressão, é crime. Discurso de ódio e transfobia não são opinião, são crime.

E bem sei que falta informação e que nem sempre é fácil compreendermos realidades que não nos atravessam. Mas eduquemo-nos, procuremos ler e ouvir pessoas trans. Perante o desconhecimento sobre uma pessoa ou realidade, façamos aquilo que sugeri no início deste artigo: abrir a mente e ativar a curiosidade. É este o início do caminho para um mundo mais empático e inclusivo.

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