Miguel Queimado faz serviço público com o Alvarinho Vale dos Ares

A empresa de Monção viaja pelo país para mostrar a evolução do Alvarinho Vale dos Ares (colheita) ao longo de dez anos. Era tão bom, mas tão bom, que a moda pegasse.

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Miguel Queimado é o responsável pela marca Vale dos Ares, em Monção, que só trabalha a casta Alvarinho; numa prova recente mostrou dez colheitas da mesma referência João Miguel Rodrigues / Direitos Reservados
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Se a generalidade dos críticos de vinhos insiste na necessidade de dar tempo aos vinhos brancos em garrafa, nós, no Terroir, parecemos um disco riscado e não há volta a dar. Mais, se pudéssemos — e por aqui a regra é sonhar e depois logo se vê —, enchíamos o Altice Arena com gente amante do vinho sentada perante quatro vinhos brancos de uma mesma marca, feitos da mesma maneira, mas com vários anos de distância entre cada colheita. Digamos, por exemplo, um vinho de 2022, um de 2019, outro de 2016 e um final de 2014. E para quê? Para demonstrarmos no exercício de prova — e não pelo paleio — que, se tivermos um bocadinho de paciência ou algum planeamento na garrafeira, se não cometermos os habituais vinicídios, vamos obter muito mais prazer.

De resto, os portugueses têm hábitos curiosos: o vinho, que é suposto evoluir em garrafa, é bebido cedo demais; o azeite, que deve ser consumido mal é extraído (nunca ultrapassando os 16 meses de vida), é guardado por muita gente para categoria de ‘reserva’, quando já liberta umas belas notas de ranço.

Assim como um tinto evolui com o tempo, o mesmo acontece com um branco. Claro que, em tese, um branco não terá a capacidade de evoluir tanto como um tinto, mas Portugal e o mundo estão cheios de vinhos brancos que, com cinco, oito ou dez anos, estão muito melhores do que quando eram jovens e tinham mais ou menos os mesmos aromas e sabores que outros milhares de vinhos jovens, com muita fruta, muitas flores, bâtonnage e madeira quanto baste. É o tempo que dá notoriedade, finesse e personalidade a um vinho — tinto ou branco. Isso aplica-se a todos os brancos? Claro que não.

Miguel Queimado e a distribuidora Vinalda organizaram uma prova vertical para mostrar a evolução deste Alvarinho Vale dos Ares (colheita) ao longo de dez anos João Miguel Rodrigues / Direitos Reservados
Miguel Queimado é um pequeno vigneron e não tem como armazenar vinhos para os lançar mais tarde, mas isso não o impediu de ir guardando ao longo dos anos algumas garrafas de cada colheita de Vale dos Ares João Miguel Rodrigues / Direitos Reservados
O produtor dos vinhos Vale dos Ares só trabalha a casta Alvarinho, que a cada vindima dá vinhos base bastante diferenciados, com os quais Miguel Queimado (à direita) consegue criar um portfólio rico João Miguel Rodrigues / Direitos Reservados
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Miguel Queimado e a distribuidora Vinalda organizaram uma prova vertical para mostrar a evolução deste Alvarinho Vale dos Ares (colheita) ao longo de dez anos João Miguel Rodrigues / Direitos Reservados

A generalidade dos produtores e dos enólogos conhece este rosário e gostaria que os vinhos fossem consumidos no tempo certo e não precocemente, só porque temos de ir todos a correr provar a colheita que saiu na semana passada. O problema é que os responsáveis financeiros têm pouca sensibilidade sensorial. São viciados em facturações à velocidade da luz. O consumidor — na cabeça dos especialistas no Excel — tem é que comprar cedo e beber cedo porque é isso que faz rodar o negócio. Em todo o caso, alguns produtores querem mudar o estado das coisas. E com alguma imaginação.

Miguel Queimado é o responsável pela marca Vale dos Ares, em Monção. Produz 27 mil garrafas, com diferentes referências, todas com uma única casta — Alvarinho —, o que significa que é obrigado a estudar a variedade ao limite, visto que tem vinhas com altitudes diferentes (entre os 150 e os 350 metros), idades variadas, solos de xisto, de transição e graníticos e sistemas de condução e exposições diferentes.

Poder-se-ia dizer que isto de se trabalhar uma só casta é capaz de ser aborrecido, mas, em rigor, cada vindima dá, a partir da mesma casta, vinhos base bastante diferenciados, com os quais Miguel consegue criar um portfólio rico. Os vinhos Vale dos Ares são o que na gíria do meio se chama vinhos de parcela (parcelas e enologia variada). Em certa medida, o enólogo faz com o Alvarinho em Monção aquilo que na Borgonha se faz com o Chardonnay — uma só casta dá para muitos perfis de Chardonnay.

Agora, como pequeno vigneron que é (só trabalha as uvas dos seus 7 hectares), Miguel não tem, de facto, condições para armazenar vinhos para serem lançados mais tarde. Mas isso não o impediu de, por estes dias, meter-se à estrada e, de Norte a Sul, num conjunto de garrafeiras e restaurantes mostrar dez colheitas do seu Vale dos Ares gama de entrada para clientes habitués dessas mesmas garrafeiras. “Eu, como pequeno produtor, não tenho condições para guardar vinhos e, por outro lado, a procura é tal que a venda é feita por alocação, mas, ainda assim, fui guardando algumas garrafas de cada colheita de Vale dos Ares, coisa que — agora com uma década de trabalho — permite-me mostrar os vinhos para clientes especiais e gente do sector”, diz o produtor ao Terroir.

E foi assim que, no Clube de Jornalistas, em Lisboa, tivemos a oportunidade de participar numa prova vertical do Vale dos Ares Colheita dos anos de 2012 a 2021, para concluir mais ou menos o óbvio: quando novos, os Vale dos Ares — anos climáticos à parte — caminham pelas famílias aromáticas dos cítricos e de alguma fruta tropical, com uma boca sempre alimonada e com tensão por via da acidez. Com alguma idade — a partir do terceiro ano de garrafa —, começamos a sentir aromas de evolução (sílex, fósforo, ervas secas). Com mais tempo já estamos nos campeonatos dos aromas apetrolados, dos méis, do endro e do funcho. Ou seja, estamos no campeonato da complexidade, do desafio e do prazer que qualquer enófilo espera quando abre uma garrafa.

Nestas matérias é uma tolice registar em forma de lei quais foram as melhores colheitas, visto que o tempo acrescenta aromas, sabores e texturas que são valorizados de forma diferenciada por cada consumidor. Cá para nós, encantaram-nos as colheitas de 2019 (floral e mineral no nariz com grande tensão na boca); de 2018 (notas cítricas à mistura com madeira de cedro e uma boca gorda, com frescura); de 2016 (laranja confitada, toranja e espargos que se sentem no nariz e na boca) e a de 2013. Esta por ter tudo: notas cítricas e minerais, com a prova de boca a levar-nos para os lados das maçãs ou do mel.

Em dez colheitas, só a de 2014 nos pareceu mais evoluída, o que tanto pode reflectir o ano ou uma rolha que não vedou como devia, mas, acima de tudo, uma prova de vinhos com alguma idade dá-nos um prazer prolongado porque, à medida que o oxigénio se mistura com estes vinhos descobrimos aromas e sabores que não estavam lá quando o vinho caiu no copo. Vamos atrás e vamos à frente na sequência dos copos e divertimo-nos.

Com a chancela Vale dos Ares existem Alvarinhos trabalhados com outro refinamento (madeiras, borras, bâtonnage e tempo de estágio), mas teremos de cumprimentar Miguel Queimado e a distribuidora Vinalda por terem levado tanta riqueza pelo país fora a partir de um vinho que custa 11,50 euros. Quem provou todas as colheitas deste vinho de gama de entrada sabe hoje que, se comprar três garrafas ou uma caixa de Vale dos Ares, está a fazer um negócio interessante, coisa que é bom para todas as partes.

Hoje calhou o exercício arrojado e didáctico de um pequeno produtor de Alvarinho, mas, verdade seja dita, em quase todas as regiões do país podemos encontrar vinhos brancos datados com grande nível e que só agora deveriam ser bebidos. Está na altura de mudarmos de comportamento. Aliás, já que estamos embalados nesta matéria, por estes dias falaremos do novo Reserva dos Sócios 2019, da Carmim.

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