“Há um efeito negativo indirecto da pobreza no desenvolvimento das crianças”

Estudo revela que residentes em Lisboa colocam pobreza como principal obstáculo ao desenvolvimento infantil, mas a pobreza em si mesma não é causa do não desenvolvimento saudável.

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Daniel Rocha
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O estudo diz respeito apenas a Lisboa. Que percepções tem a população residente na capital sobre a importância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento das crianças? A pobreza é referida por 89% dos inquiridos como o grande obstáculo, seguida da violência familiar (87,7%), da saúde mental dos pais (86%), das doenças infantis (85,3%), do stress dos pais (81,7%) ou das suas doenças crónicas ou prolongadas (78,7%).

Promovido pela Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso, o estudo foi desenvolvido pelo Instituto Superior de Saúde com uma amostra de 300 pessoas – aleatória e estratificada por freguesia, idade e género. Os resultados são divulgados esta terça-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

“O que as pessoas valorizam mais é a pobreza”, observa o coordenador do estudo, Fausto Amaro. Ora, “isso pode ser discriminatório”. “A pobreza, em si mesma, não é causa de não desenvolvimento infantil.” “Não é pelos pais serem pobres que maltratam as crianças ou que as crianças não se desenvolvem bem”, enfatiza.

Desfeito o equívoco, o sociólogo é categórico: “Há um efeito negativo indirecto da pobreza no desenvolvimento. As pessoas têm menos recursos. As crianças tendem a viver em habitações com menos condições, a ter pior alimentação, a ter menos livros, menos estimulação.”

Há, porém, outros factores em jogo e esses podem afectar as crianças de qualquer classe social. “Uma parte muito importante do desenvolvimento infantil diz respeito à vinculação”, sublinha. “A estimulação infantil é cognitiva, mas também afectiva. Tem de haver amor. Esse amor tem de ser transmitido por quem cuida da criança. É fundamental que a criança sinta afecto e segurança para se desenvolver de forma saudável.”

Um bom ambiente familiar e social é mencionado pela maioria dos inquiridos (88,3%) como essencial para uma infância saudável e feliz. Entre os factores apontados como positivos emergem o passar tempo com os pais (90,3%) ou a brincar com outras crianças (90%).

Problemático, alerta Fausto Amaro, é “as pessoas não terem noção da importância dos três primeiros anos”. Quase dois terços (64,3%) revelaram não conhecer a idade em que se realiza o maior desenvolvimento do cérebro (0 aos 3 anos) e mais de um quarto (29%) não considera a exposição prolongada a ecrãs um entrave. Poucos reconhecem o potencial da educação pré-escolar.

Só 57,7% conferem um papel educativo à creche. A maior parte (79,7%) julga que a função principal dessas estruturas é tomar conta das crianças enquanto os pais estão a trabalhar. Ainda assim, mais de três quartos (77,3%) admitem a sua relevância no estímulo das crianças.

No caso do jardim-de-infância (crianças com idades entre os três e os seis anos), há “um reconhecimento mais consensual (83,3%) do papel que tem no estímulo das crianças”. E na educação (66,7%). Ainda assim, “três quartos (74,3%) destacam a função de tomar conta das crianças”.

Deste estudo, desenvolvido por Mafalda Duarte e Paula Espírito Santo, resultam várias recomendações. “Uma delas é tentar, através de campanhas de informação, de acções formativas, sensibilizar as pessoas para a importância dos primeiros anos de vida”, refere o coordenador. E fazê-lo tendo como aliados os serviços de saúde, as instituições de solidariedade social, as comissões de protecção de crianças e jovens.

A conferência desta terça-feira deverá juntar especialistas e decisores em torno das prioridades da campanha "Primeiros Anos A Nossa Prioridade", que a Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso desenvolve em Portugal. Partindo da campanha europeia First Years First Priority, foi iniciada há dois anos para influenciar políticas e investimentos.

“Estes resultados motivam a chegar mais longe”, diz Paula Nanita, administradora executiva da fundação. Conta cerca de 150 acções de sensibilização e de formação. “Mesmo assim, ao fim destes dois anos, só um terço das pessoas sabe a importância dos três primeiros anos de vida. Temos de continuar pelo menos mais um ano a campanha. O que acontece nos três primeiros anos condiciona muito do que somos depois como jovens e adultos."

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