Estou confuso: somos CR7 ou somos Nobel da Paz?

Idolatramos desportistas mesmo que se ponham ao lado de assassinos de mulheres, gays ou opositores e damos um Nobel da Paz a uma heroína que deu a vida pelos direitos das mulheres.

Eu só tenho pena que não existam mais manifestações de reconhecimento, com expressão significativa, por aqueles que deviam ser a inspiração de todos nós, em particular para os mais jovens beberem melhores orientações. Se premiássemos a bondade, o altruísmo, e a coragem dos que ousaram ir pelo caminho do que está certo, e não do que é mais fácil, teríamos um mundo melhor. O Prémio Nobel da Paz devia ser como aquele cliché do Natal, devia ser “todos os dias”.

“Mulheres, vida, liberdade”, slogan que ficou imortalizado após a morte da iraniana de 22 anos Mahsa Amini, às mãos da polícia dos costumes, em circunstâncias “desconhecidas”, após se ter recusado a usar o hijab (véu islâmico). Este slogan, que nasceu em 2015 com as mulheres curdas, reconhecidas indiscutivelmente pela sua coragem, p.e., na luta armada contra o Estado Islâmico, fica agora escrito no céu pela coragem das iranianas e dos iranianos contra a tirania do seu regime.

A receber, ou melhor, a ser honrada com o Nobel da Paz, uma vez que ainda não sabemos se o vai receber porque está presa, este ano foi Narges Mohammadi, mulher iraniana de 51 anos, com licenciatura em Física e que enveredou pelo jornalismo e que desde cedo se dedicou afincadamente à luta pelos direitos das mulheres, altamente oprimidos na ditadura teocrática de Ali Khamenei. Já esteve presa inúmeras vezes, já foi chicoteada, torturada e continua na luta. Muito há a dizer sobre a sua valentia e vida inspiradora, mas que talvez se resuma no pedido às Nações Unidas para incluir a denominação de “Apartheid de género” nos crimes contra a humanidade.

Para os que acreditam nos direitos humanos universais, devemos-lhe muito.

A quem é que não devemos nada, a não ser o nosso repúdio? Aos que não se importam, aos que fecham os olhos, aos que são coniventes e até cúmplices destes regimes teocráticos que tratam as mulheres como objectos inferiores ao homem, até perante a lei.

Há dias o Presidente da República entusiasmou-se no Canadá e entre outras maravilhas de Portugal disse “nós somos Cristiano Ronaldo”. Não deixa de ser interessante a pouca relevância que foi dada a esta frase (embora Susana Peralta tenha escrito, e muito bem, “Não sou CR7”) versus as suas tiradas claramente desprovidas de sentido sobre um decote, ou uma cadeira que podia partir, o que só mostra que nós vivemos mesmo presos no nosso bairrinho. Claro que em ambos os casos (decote e cadeira) as críticas têm de ser feitas, mas enaltecer um futebolista que é o símbolo da ganância desmedida, hipnotizado pelo seu próprio ego megalómano e que faz a coisa mais desprezível que há, que é cuspir no prato onde comeu, ao criticar feroz e repetidamente o futebol português que lhe deu tudo o que ele tem, é absolutamente o contrário do que precisamos como exemplo, se queremos uma sociedade mais humana.

Há quem responda a estas críticas, dizendo “tu também ias por aquele dinheiro!”. Não, não ia, porque eu vi crianças a morrer no Iémen por causa da Arábia Saudita e não há dinheiro que pague essas vidas. O certo e o errado não têm preço, a minha consciência não está à venda, e vivo muito mais feliz com menos, mas do lado humano do planeta, do que a dar apertos de mão cheios de sangue a facínoras.

Depois ainda há outra versão dos que são cegos pelo amor a CR7, e que normalmente se vê mais no feminino, que dizem “vai ser ele quem vai salvar aquelas mulheres da tirania”. Como se ele tivesse ido para lá fazer um serviço à humanidade. Ai vai salvar? Então porque é que ainda não disse nada? Porque tem medo. Porque se o fizer, vem embora no dia a seguir, ou vai preso, que é o que acontece a quem luta pelos direitos humanos naquele país. Nenhum futebolista ou treinador que lá esteja a forrar-se de dinheiro ousou dizer o que quer que seja, sobre os infinitos atentados aos direitos humanos por parte do regime saudita. Nenhum. Se o CR7 for o primeiro a fazê-lo, eu venho aqui bater-lhe palmas.

“Ah, mas ele não tem culpa do regime político do país onde trabalha!” Neste caso tem, porque é o criminoso do príncipe Bin Salman que lhe paga o ordenado, e ainda para mais, ele faz activamente parte desta campanha nojenta de lavagem dos crimes mais hediondos da história, através deste sportswashing.

Depois há quem diga “mas a Arábia Saudita já evoluiu bastante nos direitos das mulheres…” Sim, já podem guiar desde 2018, já podem sair de casa sem o marido desde 2019, já podem viver sozinhas sem um homem desde 2021. Fantástico. Sabem onde estão as activistas que lutaram por tudo isso? Todas presas, e já foram espancadas e torturadas. Leiam o relatório da Human Rights Watch 2022.

Irão e Arábia Saudita, ambos no top 10 dos países que mais maltratam as mulheres, apesar de serem arqui-inimigos na luta pelo domínio do Médio-oriente sofrem de vários males em comum: ambos são ditaduras teocráticas que desprezam as mulheres. E no que concerne aos direitos humanos, não podemos ser neutros. Há que tomar uma posição. Mas estamos a mandar para a sociedade mensagens muito confusas. Idolatramos desportistas mesmo que se ponham ao lado de assassinos de mulheres, gays ou opositores e damos um Nobel da Paz a uma heroína que deu a vida pelos direitos das mulheres.

Nós moldamos a sociedade com os valores que premiamos. Vamos enaltecer quem luta para que as mulheres não sejam um pedaço de carne, ou vamos glorificar os que pelo dinheiro vendem a alma a qualquer criminoso?

Decidam-se. O nosso futuro depende de nós.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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