“Haverá algum sobrevivente nos escombros?” Isso pouco interessa

Em Portugal somos analfabetos humanitários. As pessoas não sabem a diferença entre voluntariado e humanitarismo, e por isso acham que tudo se resolve dando “uma ajudinha”.

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A semana passada, mal vejo uma chamada de um número que não conheço a um sábado à tarde, antes de atender, percebi logo que era a comunicação social. Aceitei colaborar, mas na dúvida se não estaria a ser um bocado impostor.

O terramoto da Turquia e da Síria ainda está muito fresco. Há sete meses, eu tinha tirado uns dias para arejar as ideias num local lindo de morrer com esperança de carregar algumas alegrias, mas saiu-me o plano furado. Ao ver as notícias da Turquia e com extensão para o noroeste da Síria, eu fiquei a chorar, aninhado em posição fetal. As minhas memórias da guerra da Síria já têm uns anos, mas são de uma intensidade tão grande que ainda as sinto mesmo aqui perto. Uma chacina fratricida com 12 anos, que deixou 5 milhões de pessoas num estado de profunda miséria, cercadas pela maldade do seu ditador sanguinário, e, em cima, um terramoto altamente destruidor. Isto já não é só sofrer, isto já é ser torturado.

A minha revolta interior foi tão profunda que me levou a escrever nas minhas redes sociais algo parecido com “digam-me onde está a justiça divina?”, “digam-me onde anda o famoso Karma?”, expliquem-me aquele cliché vazio que muitas pessoas adoram “tudo acontece por uma razão.” Qual é então a razão para estas pessoas nascerem condenadas à morte, ou pior, a uma vida em sofrimento?

Aceitei então dar todas as entrevistas que me solicitaram e escrevi o mais que pude. A pergunta que mais me faziam na TV era “haverá algum sobrevivente nos escombros?” Só para não ser mal-educado é que não contrapunha com “é mesmo isso que vos interessa?” Eu compreendo que a maioria das pessoas queira ouvir coisas espetaculares, mas o que eu queria era driblar essas perguntas sensacionalistas que têm utilidade nula e tentar contribuir para aquilo a que eu chamo literacia humanitária.

A sociedade civil sente, comove-se, e quer pôr a sua acção no trajecto do coração, mas não faz a mínima ideia de como fazê-lo. Então proliferam as acções avulsas de recolha de roupa suja, pacotes de arroz e paracetamol. E, ainda, as vontades impulsivas de ir para o local sabe-se lá fazer o quê.

Não me levem a mal, estas vontades e estes impulsos são genuinamente o melhor de nós, e deles, por vezes, nascem coisas válidas. Mas querer ajudar e saber ajudar são coisas muito distintas. Em Portugal somos analfabetos humanitários. As pessoas não sabem a diferença entre voluntariado e humanitarismo, e por isso acham que tudo se resolve dando “uma ajudinha”, mas apenas enquanto estas tristezas passam na TV.

Depois de receber umas largas dezenas de mensagens de pessoas a dizerem-me que queriam ir para a Turquia, eu escrevi nas minhas redes sociais algo como: “Se daqui a um mês ainda quiserem ir para a Turquia, eu levo-vos de mão dada à porta de uma organização humanitária que esteja no terreno.” Sabem o que é que aconteceu passado um mês? Nada. Zero mensagens. Passaram os desejos ardentes de ajudar quem tanto precisa...

Perdi três dias de suposto descanso, por estar constantemente a ler, a estudar, a preparar-me para estar à altura do desafio de comunicação que tinha essencialmente dois objetivos: 1) explicar às pessoas a importância e a complexidade do profissionalismo humanitário, e a melhor forma de transformar a nossa boa vontade, em impacto positivo na vida dos que estão a sofrer; e 2) que as pessoas olhassem para a Síria com o coração, o que já não acontece há muitos anos, porque a guerra continuou mas os nossos corações fugiram. Senti-me útil nestes propósitos.

Embora em menor escala, tentei fazer o mesmo com a catástrofe em Marrocos. Depois de algumas intervenções, passados quatro dias do terramoto recebi um convite da SIC Notícias para comentar se ainda haveria sobreviventes nos escombros, e recusei. Não via utilidade nem médica, nem humanitária, e até senti que chocava de frente com o que eu acredito que é importante. A produção perguntou-me então o que me parecia importante dizer, e eu respondi: “O que verdadeiramente interessa. O pós-crise.”

Quando recebi as notícias da Líbia, a primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Até no timing tiveram azar, porque desgraça em cima de desgraça não vende.” Apesar do incidente ser muito mais mortal e destruidor, e num povo muito mais susceptível, as atenções e as ajudas vão ser muito mais diminutas do que para Marrocos.

Várias vezes repito que, numa guerra, as pessoas morrem muito menos dos tiros e das bombas do que de tudo o resto. As pessoas morrem por tudo e por nada quando um Estado deixa de funcionar. E a forma como a cidade de Derna no leste da Líbia foi rasgada a meio pelas cheias é só uma prova disso mesmo. Há várias dimensões da análise desta catástrofe.

  1. Alterações climáticas. Fenómenos como a tempestade Daniel estão a ser comprovadamente mais frequentes pelo aquecimento global, como nos evidencia o recorde histórico da temperatura média dos oceanos no início de Agosto, que catalisa estes extremos climáticos. Choveu em 24 horas o equivalente a um ano.
  2. A Líbia é um Estado falhado, a contas com uma terrível guerra civil desde 2011. A não manutenção das duas barragens que colapsaram é uma consequência da guerra. Há cerca de um ano, foi feito um relatório que apontava para a perigosidade das mesmas e nada foi feito.
  3. A grande maioria das mortes, que caminham para 20.000 numa cidade que tinha cerca de 100.000 habitantes, podia ter sido evitada com algo tão simples como alertas das autoridades, se os serviços meteorológicos não estivessem anárquicos por causa da guerra, como referiu a Organização Mundial Meteorológica.

No entanto, quando passa a urgência e a atenção dos media, ainda está tudo por fazer. É inevitável que as notícias mudem rapidamente para outro foco qualquer, mas quem quer, efectivamente, salvar vidas e aliviar o sofrimento deve perceber que o trabalho mais importante começa agora.

Todos temos picos de empatia, e ainda bem, mas transformar essa emoção tão bonita em consistência exige algum trabalho. Já alguém se lembrou de saber como é que está o pós-crise da Turquia e da Síria? 17 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária, segundo a Cruz Vermelha. E só quem é educado a compreender estes fenómenos é que compreende a importância da continuidade e do profissionalismo humanitário.

Lutar por um mundo melhor não é uma corrida de 100 metros, é uma maratona.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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