Para quê pagar a escritores fantasma no Quénia quando a IA pode fazer os teus trabalhos?

Os licenciados quenianos escrevem ensaios para estudantes na Europa e EUA. Mas agora o ChatGPT ameaça o domínio dos humanos no mercado da escrita académica.

Foto
Os licenciados quenianos escrevem ensaios para estudantes na Europa e EUA REUTERS/Siegfried Modola

Langat tinha uma boa licenciatura em Matemática e grandes esperanças numa carreira em estatística depois de terminar o curso numa universidade queniana de nível médio, há sete anos. Mas as coisas não correram como planeado.

Por isso, quando o seu sonho de trabalhar com números para o governo ou ensinar Matemática no liceu se desvaneceu, Langat seguiu um caminho diferente. Começou uma vida de escritor académico, um termo brilhante para o mundo obscuro da "batota contratual" no Quénia.

Os escritores académicos — jovens quenianos instruídos, como Langat — escrevem ensaios, fazem trabalhos e até fazem exames para estudantes ricos de países desenvolvidos, principalmente da Europa e dos EUA.

Não existem estatísticas fiáveis sobre o número de quenianos que trabalham nesta indústria paralela ou sobre o valor da sua produção. "A maior parte das vezes, recebo 200 a 300 dólares por mês por aluno, dependendo do que combinarmos. Escrevo trabalhos sobre enfermagem e cuidados de saúde", diz Langat, 30 anos, à Thomson Reuters Foundation. "Ajudei cerca de 30 alunos desde 2018."

A procura por material pago cresceu muito na última década, mas Langat disse que o mercado já existe há muito mais tempo. "Embora a maior parte dos intervenientes mantivesse segredo e não dissesse exactamente o que estava a fazer", explicou.

Agora, Langat receia que a escrita fantasma possa estar a ser ameaçada pela inteligência artificial (IA), que pode produzir trabalhos a grande velocidade e de forma gratuita.

O ChatGPT, o chatbot da Microsoft lançado no ano passado, é capaz de gerar artigos, redacções, piadas e até poesia em resposta às solicitações de utilizadores, evitando assim a necessidade de recorrer a batotas humanas para realizar os trabalhos de alunos ricos.

De acordo com um inquérito realizado em Janeiro pela Study.com, plataforma de aprendizagem online, mais de 89% dos mais de mil estudantes inquiridos afirmaram ter utilizado o ChatGPT para obter ajuda com os trabalhos de casa. O inquérito revelou que 48% dos estudantes também admitiram ter utilizado o ChatGPT para fazer um teste ou uma questão de aula em casa, enquanto 53% pediram-lhe que escrevesse um trabalho e 22% que escrevesse um esboço de um trabalho.

Tudo isto minou a indústria de escritores fantasmas na África Oriental. Os rendimentos dos escritores fantasmas variam muito — a investigação mostra que oscilam entre quatro mil e 2 milhões de xelins quenianos (29 a 15 mil euros) por mês, dependendo da experiência do autor, da altura do ano ou do volume de trabalho que assume.

"No início do ano, o rendimento caiu significativamente porque toda a gente se apressou a utilizar as ferramentas de IA", conta Langat, que não quis dar o seu nome completo "por medo de ser vitimizado e perder clientes". Langat deposita as suas esperanças no facto de o toque humano superar a IA, à medida que os professores se apercebem das tendências destas ferramentas.

"Alguns professores começaram a conseguir detectar qual o conteúdo que é original e qual o que é gerado pela IA, e é por isso que o mercado da escrita voltou a subir", afirma.

Quénia: ponto quente da escrita fantasma

O Quénia é um ponto de referência para a escrita académica, com muitos estudantes de todo o mundo a recorrerem aos seus licenciados, conhecedores de tecnologia e falantes de inglês, para obterem ajuda com ensaios, trabalhos, assistir a aulas e até mesmo fazer os seus exames.

"O mercado da escrita académica é vasto em todo o mundo, com mercados notáveis no Quénia, Nigéria, África do Sul e partes do Sudeste Asiático", afirma Langat, que está num grupo no Facebook de colegas escritores e estudantes com mais de 170 mil membros.

O boom começou há uma década, quando a elite académica do Quénia deixou a universidade e entrou num mercado de trabalho inundado, sem vagas que se adequassem às suas competências ou pagassem as suas contas. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, a taxa de desemprego no Quénia é de 5,5%, com os jovens entre os 15 e os 24 anos a enfrentarem uma taxa de desemprego de 13,35%.

Por isso, encontraram outra forma de usar os seus cérebros e de ganhar bem. Laura, jovem de 22 anos que estuda estatística em Nairobi, começou a trabalhar como escritora académica em 2021, depois de ter feito cerca de mil euros a escrever um ensaio sobre enfermagem para uma amiga.

Percebendo a escala da oportunidade, lançou a própria conta online e começou a lidar directamente com estudantes americanos que queriam escritores fantasmas para fazer os seus trabalhos. Em pouco tempo, o negócio transformou-se numa bola de neve.

"Há classificações. E quando se tem uma boa classificação, os trabalhos aparecem. Agora tenho três contas e contrato escritores que são maioritariamente estudantes. Já não peço dinheiro aos meus pais. Em vez disso, mando-lhes dinheiro", conta.

Laura já não sonha com as típicas carreiras de licenciada, pois sente que nenhuma empresa pode igualar os seus rendimentos actuais. "Ganho entre três e sete mil dólares num mês bom. Também temos períodos maus, mas as poupanças são suficientes", disse Laura à Thomson Reuters Foundation.

O esquema também funciona para os estudantes ocidentais mais atarefados. Harold, um estudante universitário nos Estados Unidos, disse que pagou a três escritores académicos para lhe escreverem seis trabalhos, gastando 1025 euros em quatro ensaios nos últimos dois anos. Só tinha contratado quenianos com base em recomendações de amigos.

"Trabalhei com dois escritores quenianos e eles são bons. A maior parte do trabalho que fazem não é sinalizado pelo professor, e estou disposto a gastar o meu dinheiro para conseguir o trabalho feito", disse Harold, que estuda numa universidade em Wisconsin.

ChatGPT "não é assim tão inteligente"

Lançado em Novembro passado pela OpenAI, sediada em São Francisco, o ChatGPT tornou-se a aplicação com o crescimento mais rápido da história, atingindo 100 milhões de utilizadores em dois meses.

Harold testou-a, mas com resultados díspares.

"Não é assim tão inteligente e um bom professor conseguirá saber que conteúdo é original", disse. "Um trabalho meu foi rejeitado uma vez, por isso decidi voltar a recorrer a escritores académicos em África."

Os académicos dizem que conseguem detectar o ChatGPT no trabalho, citando a sua falta de erros e de originalidade.

"Consigo distinguir um ensaio escrito por uma máquina de um escrito por um estudante", assegura Dickson Gekombe, um professor da área de Tecnologia na Universidade de Kibabii, no oeste do Quénia. "O que foi escrito por uma máquina não tem erros ortográficos ou gramaticais, as frases fluem."

Por isso, embora a IA produza bons trabalhos, também produz estudantes preguiçosos. "Não terão a cultura da leitura e a capacidade de fazer investigação diminui", afirma. "E vão começar a dizer: 'Porque é que vou perder o meu tempo, ir à biblioteca, fazer investigação, quando esta coisa pode fazer isso por mim e eu faço outras coisas?'"

Sugerir correcção
Ler 1 comentários