Sobre o hábito nacional de convidar para trabalhar de borla

A apologia do trabalho gratuito, dos horários longos sem remuneração, dos eternos salários mínimos e da total ausência de progressão remuneratória e funcional são uma castração nacional.

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Megafone P3: Sobre o hábito nacional de convidar para trabalhar de borla Unsplash

Quando somos demasiado voluntariosos e activos somos alvo de um flagelo nacional: convites para trabalhar de graça em projectos excitantes. Pior, os convites tendem a vir de quem está a ser remunerado nessas instituições. Jovens, quem pretende mudar de carreira ou quem está a tentar inovar são os alvos preferenciais. Ou seja, um claro desincentivo ao desenvolvimento, à capacitação, autonomia e motivação dos indivíduos.

Trata-se de um sistema que tritura o potencial individual e a liberdade criativa. Ainda que seja visto como uma forma de dar “oportunidades”, na prática o efeito pode ser inverso.

Outro mau hábito nacional perpetua-se na atribuição de valor. Caso concreto da aquisição de um bem ou serviço. Dificilmente conseguimos justificar investimento em bens não materiais, nomeadamente no trabalho, na criatividade e na implementação de um processo inovador. Se o investimento não incluir o tal bem material significativo, dificilmente conseguimos cobrar o devido valor intelectual. E sabemos que sem conhecimento dificilmente conseguimos produzir eficientemente verdadeiro valor acrescentado. Se nos limitamos a exportar bens generalistas e de baixo valor, dificilmente podemos gerar riqueza suficiente.

Não sei se esta maldição produtiva e do sistema da valorização depende totalmente da influência histórica de um país em que o empreendedorismo de vanguarda parece ter parado de se desenvolver no século XVI. Tivemos casos pontuais e tentativas de mudar, mas a persistência de uma agricultura e indústrias pouco produtivas (pouco conhecimento e tecnologia mobilizados), um analfabetismo funcional e aversão ao investimento produtivo continuam a ditar a nossa cultura de trabalho.

Por isso emigramos e continuamos a sair. Mesmo quem volta não consegue mudar o modus operandi nem o status quo. A herança persiste, pois é acarinhada pelos poderes instituídos, receosos de mudanças. Persiste uma certa forma de sociedade paroquial onde a competição é quase sempre destrutiva, a colaboração vista como uma fraqueza e o trabalho assumido como um castigo.

Assim, quando nos convidarem para trabalhar de graça o nosso engenho tem de ser duplo. Se aceitamos temos de demonstrar que somos muito bons para termos a esperança de nos pagarem a médio prazo. Isto gera uma resiliência única, ainda que percamos a motivação. Se assim não fosse, imaginem o que poderíamos fazer. Se aproveitássemos essas energias para produzir mais e melhor, distribuindo rendimentos que alimentam a economia. Todos iríamos ganhar. Se competíssemos por cima e não por baixo, não ficaríamos de rastos.

A apologia do trabalho gratuito, dos horários longos sem remuneração, dos eternos salários mínimos e da total ausência de progressão remuneratória e funcional são uma castração nacional. Dificilmente deixaremos de ser pequenos enquanto não fugirmos desta prisão social.

Dirão os empregadores que não existem margens, que os impostos são demasiados elevados, que a instituição pública não pode contratar e a burocracia inútil tudo mina. Sei que tudo isso é verdade (em parte). Mas sem obtermos o devido proveito de todo o nosso capital humano jamais poderemos mudar este fado.

Continuaremos entre a tristeza e uma alegria sob grilhões de uma nova escravatura, num estado bipolar de auto-enfraquecimento e medo do futuro. Quem sabe as novas gerações consigam mudar isto, à medida que se abrem ao mundo e procuram reinventar valores e relacionamentos. Quem sabe…

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