Leveduras do vinho podem ajudar a reduzir produtos químicos na vinha

Estas leveduras do vinho têm uma acção antagonista que permite o biocontrolo de agentes fitopatogénicos numa viticultura sustentável. Com ensaios já feitos, o próximo passo é aprovar biofungicida.

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Equipa do projecto ABC Yeasts isolou no ecossistema vitivinícola três leveduras indígenas que podem ajudar a combater fungos indesejáveis na vinha José Sérgio

Colocar leveduras do vinho ao serviço da sustentabilidade na vinha não é novo, mas é algo relativamente recente e os produtos que existem já no mercado, de dois gigantes europeus, utilizam uma só levedura. Por cá, a empresa Proenol e investigadores da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e da Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID) juntaram-se para seleccionar leveduras que fossem capazes de actuar como protectores da videira e até como fungicidas biológicos e seleccionaram três, cuja acção conjunta promete.

O ensaio de campo foi feito no Douro e o projecto, financiado pelo Compete 2020, e que tem como stakeholder a Sogrape — a empresa disponibilizou duas parcelas para os ensaios, uma Baixo Corgo, onde está plantada a casta branca Gouveio, e outra no Cima-Corgo, de Tinta Roriz —, apresentado esta quarta-feira em Vila Real. Dificilmente o produto que sair do ABC Yeasts (ABC de Agentes de Bio Controlo) substituirá totalmente os produtos químicos na vinha, mas os seus responsáveis acreditam que, num cenário de gestão integrada, a nova solução pode reduzir em muito o uso de pesticidas e ajudar no cumprimento das metas definidas pela nova legislação europeia nesta matéria.

O objectivo era “seleccionar leveduras passíveis de servirem como antagonistas para biocontrolo de agentes fitopatogénicos numa viticultura sustentável”, explicou Filipe Centeno, director técnico da Proenol, empresa de biotecnologia que estava “mais habituada a trabalhar com leveduras para dentro da cuba do que para fora da cuba”.

Ao invés de as usarem na fermentação do sumo de uva — as leveduras transformam os açúcares da uva em álcool —, aqui tratava-se de seleccionar as mais capazes de configurarem uma solução biológica, nascida na natureza e na vinha, e de testar essa selecção. Tudo em apenas três anos, um prazo apertado que obrigou a saltar o ensaio em vaso, explicaram os investigadores, que vêem essa circunstância como a dificuldade e a riqueza deste estudo.

A equipa da UTAD criou um portefólio de “400 isolados, de mais de 20 géneros e mais de 30 espécies, com origem em diferentes regiões vitivinícolas portuguesas”, a partir de duas colecções de leveduras vínicas autóctones e com a acção antagonista que se pretendia estudar. Fez “um mapeamento dos fungos fitopatogénicos na região do Douro” e isolou para cada um dos alvos — fossem estes doenças da vinha, como as podridões-cinzentas, o míldio ou o oídio, fossem agentes contaminantes pós-colheita (por exemplo, certas leveduras responsáveis por desvios aromáticos no vinho) — os indivíduos com mais potencial antagonista. No final, foram seleccionadas três leveduras indígenas, isoladas do mosto, explicou, perante uma plateia de técnicos, a investigadora Alexandra Ferreira.

A Proenol produziu depois, em laboratório, as leveduras que seriam aplicadas na vinha, através de caldas pulverizadas na folha e no cacho. E coube à ADVID “a parte mais difícil” de as ensaiar ao ar livre e em condições não-controladas, como sublinhou a técnica Maria do Carmo Val. Ainda antes de ir para a vinha, a equipa do ABC Yeasts percebeu que dentro das mesmas espécies havia “uma grande diversidade de respostas”, daí a trabalheira de terem tido de testar indivíduo a indivíduo. E estabeleceu dois mecanismos de aplicação, por contacto e por difusão, percebendo desde logo que “a formação de compostos voláteis” seria o caminho “mais eficaz”.

Uma vez no terreno, o teste in vivo não se restringiu aos agentes que haviam sido testados em laboratório e ainda foram avaliados outros parâmetros, para além da actividade de biocontrolo, nomeadamente a rastreabilidade, o efeito na maturação das uvas e, à vindima, a produtividade por videira.

As primeiras aplicações decorreram em Maio de 2020, dois anos após a primeira reunião do projecto, na altura, “o principal foco era o controlo de fungos não-biotróficos”, aqueles que tinha sido possível testar em meio de cultura, explicou Maria do Carmo Val, mas naquele ano as podridões-cinzentas não se revelaram um problema. No ano seguinte, os investigadores já apontaram agulhas para o míldio e o oídio, doenças provocadas por fungos biotróficos (que se alimentam da planta que atacam).

Ao contrário de 2020, em que houve grande pressão de míldio, em 2021 “estava tudo controlado”, recorda a técnica da ADVID, até que a primeira quinzena de Junho trouxe vários dias consecutivos de chuva, “criando condições para que a doença se desenvolvesse”. Esse imprevisto, próprio de um laboratório a céu aberto, obrigou a usar compostos químicos para estancar o problema.

E ditou uma das conclusões destes ensaios: “Quando aplicadas em períodos de baixa pressão de doenças”, ou num ano vitícola como de 2022, extremamente quente e seco, as leveduras “poderão contribuir para a redução do número de tratamentos químicos, aumentando a sustentabilidade das vinhas”, explicou a engenheira agrícola.

Com pouca pressão e numa gestão integrada

A conclusão mais interessante foi mesmo essa, a de o sector poder contar com mais uma ferramenta rumo a uma viticultura mais sustentável, já que relativamente à produtividade não se verificaram diferenças significativas entre as duas modalidades, produção integrada e leveduras.

“Este tipo de solução pode ser benéfica, sim, mas em anos de pouca pressão, como foi 2022”, ou “em períodos de baixo risco”. “Sobretudo no caso do oídio, até à fase de pós-floração/vingamento e após o fecho do cacho“, detalhou Maria do Carmo Val. Mais optimista, Natacha Fontes, gestora de Investigação e Desenvolvimento da Sogrape, descreveu os resultados do ABC Yeasts como “bastante animadores”, mas sublinhou: “Estamos no caminho certo de reduzir os produtos químicos, mas não de os eliminar.”

Certa é, com toda a certeza, a meta. “Não sabemos o que mais vem aí em termos legislativos. E, de facto, precisamos de alternativas biológicas. Mas acreditamos numa estratégia integrada, em que também entram a robotização e a digitalização, por exemplo, o smart farming.” Isso e uma agricultura de precisão, como alguém na assistência apontara já.

A solução de que falamos é, em primeira análise, um protector de plantas. Os indícios apontam no sentido de que possam actuar contra fungos, ou seja, como um biofungicida, mas cujo mecanismo de acção requer estudos científicos mais aprofundados. Para além de produzir compostos orgânicos voláteis que inibem a acção de outros fungos (as leveduras também são fungos), este tipo de produto pode levar a videira a produzir compostos orgânicos que a defendam contra infecções. E há ainda um terceiro mecanismo, explica Filipe Centeno: “Quando aplicamos leveduras, elas vão ocupar o espaço que estaria livre para o fitopatogénico e consumir os nutrientes disponíveis. Portanto, quando o fungo chega, não tem espaço nem nutrientes.”

Para que a calda feita com as três leveduras, por agora “confidenciais”, seja mais eficaz, há recomendações que a equipa ADVID deixa, por experiência própria: é preciso adoptar medidas profilácticas, como o arejamento dos cachos, e a aplicação com pulverizador eléctrico garante melhores resultados.

“Preços por hectare altíssimos”

Na sessão de apresentação do ABC Yeasts, foi possível provar os vinhos tintos de 2021 feitos com uvas da parcela de Tinta Roriz. A produção dos bardos cedidos pela Sogrape serviu, de resto, apenas para isso, uma vez que, como notou Natacha Fontes, a solução testada ainda não está homologada para vinhas comerciais. À margem da sessão no Régia Douro Park, Filipe Centeno explicou ao Terroir que, num cenário mais moroso e muito mais dispendioso, pode haver um produto aprovado no horizonte de cinco anos, com um custo que pode ascender a um milhão de euros (e que acrescerá ao investimento feito no desenvolvimento).

Isso colocaria o produto final a ser comercializado a “80, 90 euros por hectare”, ou seja, “a preços altíssimos” quando comparados com os de um produto químico (a partir de 30 euros por hectare) ou mesmo com um tratamento biológico (cerca de 50 euros por hectare). O próximo passo é, por isso, tentar explorar a “via rápida” que as mais recentes alterações à legislação europeia parecem ter aberto, de forma a ter um agente protector mais barato (“40, 45 euros por hectare”) e mais cedo. A dose aplicada por hectare também terá influência no preço, e nestes ensaios começaram por ser aplicados dois quilos por hectare, reduzindo-se depois essa dose para metade.

Até há uns anos, uma solução como esta seria tratada, em termos de homologação, como um produto fitoquímico, obrigando a um processo de aprovação mais complexo. Desde Novembro, com as alterações feitas à legislação comunitária que regula os fitofármacos, explica o engenheiro químico, foi introduzido o conceito de “substância de base” e “se essa substância de base vier do sector alimentar, abre-se uma via rápida para que o produto possa ser aplicado na vinha”, porque já não são necessários testes à substância.

Será o caso com este “consórcio” de três leveduras, como lhe chamam os cientistas. Os nomes dos indivíduos são, para já, segredo, mas uma espécie é do género Saccharomyces, que “é utilizada no pão, na cerveja, no vinho, é quase uma commodity, o chamado fermento comercial”, e as outras duas espécies, apesar de mais “específicas” e “mais difíceis e caras de produzir”, já se utilizam na vinificação.

Um dos desafios da Proenol foi, é ainda, conseguir, para estas duas leveduras, tempos de conservação mínimos mais alargados, pelo menos “um ano”. A empresa vai agora socorrer-se de ajuda especializada para montar uma candidatura a aprovação e tentará patentear “a utilização conjunta das três leveduras”, já que não é possível patentear, agora que existe na natureza.

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