Criminalização da droga: Carta aberta a Rui Moreira

Não existe até à data qualquer evidência a favor de regimes proibicionistas. Muito pelo contrário – a criminalização dissuade o recurso às estruturas de apoio social e de saúde, aumentando as mortes.

Escreveram esta carta investigadores, profissionais de saúde e pessoas que usam drogas.

Repudiamos as ações e declarações do município do Porto em relação à criminalização do uso de drogas e manifestamos a nossa vontade de iniciar o diálogo para a criação de respostas robustas para um problema complexo, em que interagem questões de saúde pública, cidadania e acesso a condições mínimas ao nível da satisfação de necessidades básicas, muito além da perspetiva exclusivamente securitária.

A Lei nº 30/2000, conhecida, popularmente, como “Lei da Droga”, e vista como vanguardista por muitos países, não só a nível europeu, mas também mundial, veio reenquadrar o consumo de drogas numa perspetiva de saúde, assente na descriminalização do uso público e privado e da posse de todas as substâncias ilícitas. Os resultados mais relevantes da sua implementação, conforme atestam os relatórios do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), foram a redução da prevalência de consumos de risco, overdoses e infeções associadas à partilha de material de injeção, como as hepatites víricas e a infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH).

Esta lei, juntamente com o Decreto-Lei 183/2001, enquadra o funcionamento de respostas fundamentais no âmbito da intervenção junto de Pessoas que Usam Drogas (PUD), nomeadamente, a Comissão de Dissuasão da Toxicodependência (CDT), os centros de Resposta Integrada (CRI), as equipas de rua e, desde agosto de 2022, uma sala de consumo assistido.

É ao abrigo deste enquadramento legal, já com mais de 20 anos de implementação, que profissionais, juntamente com pares e voluntários, trabalham, incansavelmente, em zonas rotuladas de “problemáticas”, como é o caso do Bairro da Pasteleira, já há muito considerado parte dos “territórios psicotrópicos” da cidade do Porto (Fernandes, 1997).

A intervenção policial que se observou no passado dia 6 de janeiro de 2023 e as declarações feitas pelo presidente da câmara da cidade, Rui Moreira, em relação à criminalização do consumo na via pública, ecoadas pelo Partido Socialista na Câmara Municipal do Porto, entram em direta contradição com a mentalidade despenalizadora que sustentou a reforma legislativa pela qual somos aplaudidos, visitados e estudados por todo o mundo, e que produziu ganhos de valor inequívoco no que à saúde das populações diz respeito. Paralelamente, estas ações vêm perigar a relação de confiança (às vezes, a única) que as equipas com recursos para a prestação de cuidados de saúde e apoio social constroem no terreno a que estas pessoas chamam a sua “casa”.

Nas tendas descritas como “tendas de consumo de drogas” viviam várias dezenas de pessoas em situação de sem abrigo, algumas das quais aguardando algum tipo de orientação dos serviços de Apoio Social da cidade. Viviam pessoas frágeis, com doenças crónicas com necessidade de cuidados de saúde regulares – e não só – que lhes são prestados in loco pelas equipas dos vários serviços de redução de danos que atuam na área. Viviam pessoas, sim, com problemas relacionados com o seu consumo de drogas, mas que não lhes podem ser imputados exclusivamente, e a quem foram retirados os seus poucos pertences.

A gentrificação da cidade, acompanhada da subida astronómica dos preços das rendas e a redução do número de espaços disponíveis para alojamento temporário, desempenhou o seu papel na criação da necessidade destas tendas. Para ela contribuíram também a marginalização das pessoas que usam drogas no acesso ao emprego e à habitação.

Estas tendas, como tantas outras espalhadas pela cidade, aumentam a cada dia, perante uma autarquia inerte, negacionista e negligente em relação ao número de pessoas em situação de pobreza extrema na cidade. Enquanto isso, pessoas em situação de sem abrigo são expulsas de uma rua para qualquer outra, sem que nada se altere em relação às condições desumanas em que vivem.

E, fossem algumas destas tendas verdadeiras tendas de consumo, preenchiam o vazio que existia até agosto de 2022, dum espaço seguro para a utilização de drogas. Vazio este que continua a existir, ainda que paliado pelos limitados recursos físicos e humanos que se dedicaram à sala. A sala de consumo assistido não opera de noite e não se conhecem albergues na cidade que acolham as necessidades específicas das PUD, sendo o consumo de drogas e o incumprimento de rigorosos horários de entrada e saída frequente motivo de expulsão.

Invisibilizar o fenómeno e empurrar estas pessoas para zonas menos visíveis da cidade não fará com que as suas situações se alterem, nem fará com que desapareçam.

Nas ditas “tendas de chuto” desmanteladas, grupos de pessoas protegiam-se mutuamente da morte por overdose. Partilhavam conhecimento para reduzir o risco de várias doenças infeciosas. Cuidavam de si, na ausência duma estrutura que delas cuide de forma articulada, integrada e respeitosa perante os seus direitos e dignidade enquanto pessoas, independentemente e além dos seus consumos.

E se, na nossa cidade, este género de iniciativa é visto como vergonhoso e digno de criminalização, noutras, como Toronto, os célebres “overdose prevention sites”, localizados em tendas, carrinhas e contentores, já são reconhecidos desde 1995 como uma das mais poderosas estratégias de redução das mortes por overdose e doenças infeciosas de transmissão parentérica (Foreman-Mackey, 2019).

O bestseller que é a política portuguesa de drogas deve-se à descriminalização do uso de drogas e às respostas integradas que servem os interesses das PUD. A proposta de criminalização do consumo na via pública, com agravamento da sanção nos casos de consumo em edificações devolutas e espaços privados abertos ao público, afetará desproporcionalmente aqueles que vivem em situações de pobreza e sem abrigo, pessoas que são, atualmente, as mais prejudicadas pela aplicação não equitativa da lei vigente (Domosławski, 2011).

Não existe, até à data, qualquer evidência em saúde pública a favor de regimes proibicionistas. Muito pelo contrário – a criminalização dissuade o recurso às estruturas de apoio social e de saúde, aumentando o número de mortes por overdose e doenças infeciosas. Yury Fedotov, antigo diretor executivo do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, já fazia este reparo em 2019, afirmando não ser possível o sucesso no tratamento e na prevenção dos problemas associados ao uso de drogas sem a conjunção de políticas adequadas.

Entre outras organizações, é também a Organização das Nações Unidas (ONU) que sugere a descriminalização total das PUD como estratégia única para a solução dos problemas associados ao consumo de drogas.

É profundamente míope ver o “problema” das drogas como sediado nas pessoas que as usam e será um retrocesso enorme, além de contrário à política nacional, a apologia da ampliação das sanções para quem usa drogas.

Mais uma vez varremos para debaixo do tapete o problema social em causa, que teimará em continuar, até ser devidamente abordado pelos atores políticos.

A este respeito importa relembrar a importância de respeitar os princípios fundamentais dos direitos humanos, conforme as diretrizes internacionais subscritas pela ONU e pela Organização Mundial de Saúde, assim como o princípio da participação dos cidadãos, e ainda a filosofia de intervenção da Redução de Riscos e Minimização de Danos (RRMD) no seu impacto comprovado ao nível da saúde pública, já que:

1. Todas as pessoas têm direito à igualdade e não discriminação;

2. Todas as pessoas têm direito ao mais alto padrão de saúde física e mental;

3. Todas as pessoas têm direito a participar de forma significativa na implementação e avaliação de leis, políticas e práticas;

4. Todas as pessoas têm direito a beneficiar do progresso científico e das suas aplicações;

5. Todas as pessoas têm direito à privacidade;

6. O direito à saúde aplicado às políticas de drogas e trabalho sexual inclui o acesso, a título voluntário, a informação e serviços de RRMD;

A RRMD, na sua evidência científica, parte do reconhecimento que o uso de substâncias psicoativas é um comportamento humano complexo, colocando a tónica não na abstinência como um fim, mas na saúde e bem-estar da pessoa e da comunidade. Reconhece ainda que há um conjunto de fenómenos, como a pobreza, o racismo, a criminalização, o isolamento social, a dificuldade de acesso a direitos, o trauma ou a discriminação como fatores-chave na construção de realidades em que pessoas e comunidades ficam em maior vulnerabilidade. É por isso uma abordagem compreensiva, humanista e pragmática no que se refere à sua intervenção de eficácia comprovada.

Pela complexidade do problema, que carece de aprofundamento no seu diagnóstico, advogamos por políticas humanistas de maior robustez, que tenham em conta as múltiplas problemáticas associadas, do ponto de vista da saúde, da habitação e do bem-estar social. Consideramos, por isso, ser necessário conjugar respostas integradas e partilhadas entre os domínios de ação da Saúde, Segurança Social e Habitação.

Em suma, repudiamos liminarmente o regresso a uma retórica e abordagem proibicionista e judicializante à chamada “problemática das drogas”, por esta se situar nos antípodas da visão que se encontra na base das políticas de saúde pública que, comprovada e reiteradamente, produziram e produzem ganhos em saúde e segurança das populações, no respeito pela autonomia e dignidade da pessoa humana.

Participaram na redação desta carta:

Alexandra Fiães, psicóloga

Ana Gato, enfermeira

Beatriz Bartilotti Matos, médica

Ema Pos, médica

Francisca Bartilotti Matos, médica

Gonçalo Reis Dias, médico

Joana Canêdo, redutora de danos, doutoranda

Joana Vilares, assistente social

Pedro Frias, médico, doutorando

Sérgio Gonçalves, activista

Subscrevem esta carta as seguintes organizações:

Abraço – Associação de Apoio a Pessoas com VIH/SIDA

Associação Anémona

Associação Existências

C.S.A. A Gralha

CASO – Consumidores Associados Sobrevivem Organizados

GAT Grupo de Activistas em Tratamentos

Grupo Partilha de Vivências (GPV)

HuBB Humans Before Borders

Intendente Insurgente Manas e Livraria e Biblioteca das Insurgentes

Kosmicare

Movimento dxs Trabalhadorxs do Sexo

Opus Diversidades

Panteras Rosa Frente de Combate à LesBiGayTransfobia

Saber Compreender

SER+ Associação Portuguesa para a Prevenção e Desafio à Sida

Sirigaita

SOS Racismo

Subscrevem esta carta as seguintes pessoas individuais:

Adriana Curado, redutora de danos, Adriana Magalhães, enfermeira, Afonso Massa Mesquita, psicólogo, Alexandra Camilo, psicóloga clínica, Alexandra Migueis de Aguiar, psicóloga, Alexandra Variz, artista, Ana Aguiar, investigadora em saúde, Ana Cipriano, médica, Ana Helena Nunes, coordenadora SAD, Ana Mafalda Ferreira, técnica administrativa financeira, Ana Marques, psicóloga, Ana Neto, médica psiquiatra, Ana Raquel Guimarães, estudante, Ana Soares, técnica de apoio psicossocial, Ana Sofia Miranda, médica, André Gonçalves Cardoso, enfermeiro, Andreia Ferreira, coordenadora geral SER+, Andreia Nisa, jurista, Andreia Sofia Relvas Nogueira, voluntária no grupo Ronda ComVida, Ângela Leite, psicóloga, Carla Susana Relvas Pinto, voluntária no grupo Ronda ComVida, Carmo Gê Pereira, educação sexual e comunitária, Carolina Mara Barros, psicóloga, Catarina Pereira, psicóloga, Cátia Bragança, psicóloga clínica, Cecília Rebelo Mendes, coordenadora do Grupo Ronda ComVida, Celina Gonçalves, médica, Cheila Rodrigues, poeta, Corinne Valente, enfermeira, Cristian Georgescu, educador de pares, Cristiana Vale Pires, psicóloga e investigadora, Cristóvão Figueiredo, médico, Daniel Martins, químico, David Tavares, assistente operacional na Câmara Municipal de Ovar, Dora Matos, activista, Edna Tavares, psicóloga clínica, Eduardo Lima, técnico de saúde comunitária, Elisabete Carvalho, activista, Évila Simões, estudante de Educação Social, Fabiana Santos, enfermeira, Fernanda Rebelo, voluntária no grupo Ronda ComVida, Filipa Carvalho, barmaid, Filipa Gomes, gestora de projectos, Filipe Couto Gomes, médico, Filipe Gaspar, actor Francisca Matos, estudante universitária, Gabriel Rodrigues, estudante, Helena Valente, psicóloga e investigadora, Henrique Azevedo, psicólogo, Hugo Terças, investigador, Ida Santos, psicóloga, Idalino Sampaio, par, Inês Antunes, enfermeira, Inês Caetano, médica, Inês Carmo Figueiredo, médica, Inês Correia, enfermeira, Inês Matos, investigadora e ilustradora, Inês Neto Silva, investigadora/doutorante em Sexualidade Humana, Iolanda Oliveira, assistente social, Jo Rodrigues, médico, Joana Cardoso, médica, Joana Miranda, médica, Joana Moreira, enfermeira, Joana Pires, investigadora, Joana Rita Gonçalves Santos Assunção, assistente social e PUD, Joana Vaz Cardoso, médica, João Brito, dirigente, João Caldas, técnico de saúde comunitária, João Costa, engenheiro civil, João Ferreira, engenheiro informático, João Matos, médico, João Taborda da Gama, advogado e docente universitário, Joaquim Espírito Santo, assistente social e coordenador do Sindicato de Trabalhadores da Saúde, Solidariedade e Segurança Social, Jorge, psicólogo, José Falcão, dirigente SOS Racismo e reformado CP, Josefina Méndez, médica, Juliana Ribeiro Salvador, assistente social, Julieta Soares, voluntária no grupo Ronda ComVida, Laetitia, activista, Lara Pires, psicóloga e técnica RRMD Laura Falcão, advogada Leonor Castro Lemos, psicóloga Lígia Marques, Recursos Humanos Lígia Parodi, psicóloga Luana Loria, livreira Luana Trindade, técnica RRMD, Luís Mendão, pessoa que usou drogas e director de advocacia do GAT, Luís Veríssimo, coordenação GAT Checkpoint LX, Luísa Carvalho, médica, Luísa Russo, médica, Mafalda Calado, enfermeira, Magda Ferreira, par, Márcio Ramos, médico interno, Margarida Sousa, técnica de Apoio Psicossocial, Maria Andrade, coordenação associação GPV, Maria do Mar Sousa, estudante, Maria João Berhan, enfermeira, Maria João Machado, agricultora e par, Maria Luísa Salazar, assistente social, Maria Manuel Lobo, psicóloga, Maria Vasquez, produtora cultural, música, activista, Mariana Casanova, psicóloga, Mariana Correia, assistente social, Mariana Ferreira, psicóloga, Mariana Melo, psicóloga, Mariana Melo, psicóloga e doutoranda em Sexualidade Humana, Mariana Vieira, médica, Marta Borges, assistente social e doutoranda em Serviço Social, Marta Cristina Pereira Escudeiro, assistente social, Marta Inês Jasmins, jurista, Marta Joana Moreira de Macedo, activista, Marta M. de Luz, assistente social, Marta Pereira, assistente social, Maurício Pacheco, enfermeiro, Miguel Abreu, médico, Miguel Dantas, artista, Miguel Rocha, enfermeiro, Miguel Saraiva, médico, Miriam Garrido, médica, Monique Mon, activista, Nicole Sánchez, artista, Nuno Filipe Dias Fernandes, psicólogo clínico, Nuno Silva, técnico de farmácia, Nuno Valdez Fernandes, full-stack developper, Patrícia Pestana, par, Paula Gil, assessora e activista, Paula Meireles, investigadora em Saúde Pública, Paulo Jorge Gomes Castro, activista, Pedro Almeida, técnico comunitário de Saúde, Pedro Bernardo, psicólogo clínico, Pedro Enes, médico, Pedro Faria, sindicalista, Pedro Morais, psicoterapeuta, Rafaela Cortez, jornalista, Raquel Afonso, antropóloga, Raquel Lima, técnica superior de Educação Social, Raquel Pisco, secretária GAT, Rebeca Marques Rocha, pesquisadora, Ricardo Falcato, técnico de sistemas informáticos, Ricardo Melo Faria, engenheiro de dados, Rita Alvão Santos, estudante de Educação Social, Rita Regal, criminóloga e técnica RRMD, Rita Santos, farmacêutica, Rúben Machado, operário fabril, Rui Coimbra, psicólogo, Rui Pena, activista, Rui Salvador, par, Sandra Machado, educadora, Sandra Oliveira, activista, Sandra Teixeira, psicóloga, Sandra Vieira, psicóloga clínica, Sara de Carvalho Ferreira, médica, Sara Rios, voluntária no grupo Ronda ComVida, Sara Soares, investigadora em Saúde Pública, Sérgio Aires, sociólogo, Sérgio Machado, segurança, Sérgio Rodrigues, par, Sérgio Vitorino, tradutor e intérprete, Sílvia Mourão, licenciada em Serviço Social, Sílvia Cristina Baião de Sousa, associação Abraço, Sofia Francisco, psicóloga clínica, Sofia Nunes, médica, Sofia Sobral, enfermeira, Sofia Trindade, consultora, Teresa Castro, assistente social, Teresa Mota, psicóloga, Teresa Summavielle, investigadora e docente universitária, Tiago Gama Silva, gestor, Vanda Martins, terapeuta ocupacional, Vera Palos, tradutora, Wim Vandevelde, activista, Ximene Rego, psicóloga clínica e investigadora

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