Dois anos depois, os efeitos “catastróficos” do golpe militar na Birmânia

Histórias de quatro pessoas cujas vidas foram abaladas e que estão, cada uma à sua maneira, num limbo à espera que a situação na Birmânia mude.

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Han Lay em London, Ontário, Canadá Reuters/WA LONE
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O antigo embaixador Aung Soe Moe ainda vive em Tóquio. Não vê a mulher nem a filha desde 2019 KIM KYUNG-HOON/Reuters

Dois anos depois do golpe militar na Birmânia, um jovem trabalhador que se juntou à resistência armada chora a perda da sua perna numa batalha. Um antigo diplomata não vê a família há quatro anos. Uma vencedora de concursos de beleza adapta-se a uma nova vida no invernoso Canadá. E uma professora exilada sonha em voltar à escola.

O golpe de 1 de Fevereiro de 2021, que derrubou o governo eleito da prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, deixou um rasto de vidas abaladas.

O grupo de monitorização de conflitos ACLED diz que morreram cerca de 19 mil pessoas no ano passado quando a repressão do regime aos protestos levou muitos a pegar em armas contra o Exército.

Cerca de 1,2 milhões de pessoas foram deslocadas para outras regiões do país e mais de 70 mil deixaram a Birmânia, segundo as Nações Unidas, que acusaram o Exército de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade.

O Exército da Birmânia diz que está a levar uma acção legítima contra “terroristas”. Não respondeu a um pedido de comentário feito pela Reuters.

As histórias de quatro pessoas reflectem a crise que segundo a ONU está a ter “efeitos catastróficos” sobre a população.

O combatente da resistência

Aye Chan ouviu o ra-ta-tá dos disparos, e a seguir, uma explosão.

“Não sabia se tinha sido atingido ou não”, contou o jovem de 21 anos à Reuters ao lembrar o ataque no ano passado que o deixou sem uma perna.

Quando tentou levantar-se, as pernas não responderam. Um camarada levou-o até um hospital, onde acordou com uma perna amputada do joelho para baixo.

Antes do golpe, Chan trabalhava numa fábrica de massa instantânea. Fez parte das enormes multidões que saíram à rua pedindo democracia depois do golpe.

Quando os grupos de protesto pegaram em armas, ele juntou-se a eles.

Na primeira vez na linha da frente, o seu coração disparou. “Então olhei à volta, para os meus camaradas, e eles estavam a rir. Não tive medo”, contou.

Se o moral era alto entre os combatentes da resistência, estes estavam em inferioridade numérica perante um exército bem equipado.

“Quando disparam, disparam em contínuo, não se pode sequer levantar a cabeça”, disse. “Também precisamos de poupar balas.”

Agora, passa a maior parte dos dias a dormir, cozinhar, e partilhar comida com amigos. “Tento viver a minha vida de modo tão feliz quanto possível”, disse, num local que a Reuters não pode partilhar por razões de segurança. “Não posso fazer as coisas que fazia antes.”

Chan não tem arrependimentos em relação a ter-se juntado à resistência. “Se recuperar o suficiente, vou voltar à guerra. Isto é até ao fim.”

O diplomata

Aung Soe Moe, 52 anos, era o primeiro secretário na embaixada da Birmânia no Japão quando aconteceu o golpe.

Um mês mais tarde, juntou-se a centenas de milhares de funcionários públicos e trabalhadores do Governo que se demitiram para se juntarem ao movimento de desobediência civil, que tinha como objectivo diminuir a capacidade de o Exército governar.

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Aung Soe Moe, antigo embaixador em Tóquio Kim Kyung-Hoon/Reuters

A sua mulher e filha, que não conseguiram sair da Birmânia depois da pandemia da covid-19, encorajaram-no a falar. Mais tarde fugiram através da fronteira para a Tailândia, onde muitos birmaneses procurarem refúgio, mas onde ficaram retidos sem documentos. Não as vê desde 2019.

Sozinho em Tóquio, teve de ser mudar do seu apartamento T3 no complexo da embaixada. E sem fonte de rendimento, outros birmaneses residentes no Japão ofereceram-se para lhe pagar alojamento num andar pequeno e cobrir as despesas básicas.

O Governo do Japão prolongou o visto diplomático de Aung Soe Moe para que ele pudesse continuar em Tóquio, mas ele não pode trabalhar e o visto expira em Julho. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão recusou-se a comentar o seu estatuto futuro.

“Sofri muito, mas não há nada pior do que perder o futuro do povo da Birmânia” disse à Reuters.

Alguns dias por semana, Soe Moe faz voluntariado em tarefas administrativas, como a escrever posts nas redes sociais para o governo de unidade nacional da Birmânia, um “governo sombra” civil criado depois do golpe.

Mas Soe Moe tem medo que o mundo esqueça a Birmânia, especialmente desde a guerra na Ucrânia.

“Mas o povo birmanês não desistiu da verdade”, disse. “Nunca vamos desistir!”

A rainha dos concursos de beleza

Quando o exército tomou o poder, Han Lay, 23 anos, era modelo e estava prestes a participar num concurso de beleza na Tailândia. Na noite anterior, não conseguiu dormir, de excitação e preocupação.

No palco, lutou para conter as lágrimas quando falou da violência militar num dia em que morreram mais de 140 manifestantes. O excerto viralizou.

Na Birmânia, foi acusada de sedição. Foi detida num aeroporto de Banguecoque, onde ficou vários dias, apelando nas redes sociais para não ser mandada de volta para a Birmânia.

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Han Lay vive com uma família de origem birmanesa, que fugiu da repressão da revolta pró-democracia de 1988 Wa Lone/Reuters

Acabou por voar para o Canadá e ficou a viver em London, Ontário, com uma família birmanesa-canadiana, refugiada da revolta de 1988 pela democracia que também foi esmagada pelos militares.

Quando chegou ao Canadá sentia-se sozinha, mas está a habituar-se. “Nasci na Birmânia, e a minha família, os meus amigos, o meu futuro, está tudo na Birmânia… Não tive hipótese de me encontrar com eles. Tenho saudades deles todos os dias.”

A professora

Uma professora está a viver numa cidade na fronteira com a Tailândia desde que fugiu para escapar a ser presa no ano passado na Birmânia.

Uma mulher pequena com longo cabelo negro, juntou-se ao movimento de desobediência civil que surgiu depois do golpe. Pediu para não ser identificada pelo nome, temendo represálias dos militares.

“Sabia que a minha vida ia ser difícil se me juntasse ao movimento de desobediência civil”, disse. “Mas se não nos revoltarmos, não vai ser bom para o nosso futuro.”

Juntou-se aos protestos usando o seu uniforme de professora, verde e branco, e saiu do país quando começou a repressão.

Como muitos refugiados na Tailândia, não tem documentos e vive com medo de ser detida.

Sustenta-se vendendo roupa e sacos de crochet, o que dá menos de 10 dólares por semana, e donativos de comida do governo sombra civil.

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A professora, que prefere não dizer o nome por medo de represálias, vive da venda de roupa e trabalhos de crochet Reuters

“Vou ser uma desobediente civil até ao fim”, diz. “Uma pessoa tem de passar tanto pelos tempos bons como pelos maus.”

O seu uniforme está seguro na Birmânia, bem arrumado, diz, caso consiga regressar.

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