Uma transparente trapalhada!

É de anotar a violação da separação de poderes que todo o Estado de Direito tem de respeitar e que aquele ato governamental atropela de um modo crasso.

Confesso que não tinha percebido o alcance das reticências do Presidente da República em relação ao mecanismo de aferição da idoneidade dos governantes, anunciado pelo Governo.

Mas esta sexta-feira percebi o porquê após a publicação da RCM nº 2-A/2023 no Diário da República, que cria o tal “questionário”.

Nunca o Presidente, sendo o “guardião” da Constituição, poderia alguma vez aceitar apor a sua assinatura num diploma destes, pelo que o mesmo saiu como decisão do Governo sendo no respetivo procedimento totalmente alheia à vontade presidencial.

É que são as graves inconstitucionalidades em que tal documento tropeça, não valendo de nada dizer que se trata de um “ato político”, portanto, de cunho interno, informal e só da responsabilidade do primeiro-ministro.

Isso é irrelevante porque a partir do momento em que é respondido passa a haver uma declaração de vontade que se funda numa geral e desproporcionada restrição de direitos fundamentais, cujo regime só pode ser estabelecido pelas competências da Assembleia da República, primacial em matéria de direitos, liberdades e garantias.

Por outro lado, é de anotar a violação da separação de poderes que todo o Estado de Direito tem de respeitar e que aquele ato governamental atropela de um modo crasso, ao formalizar uma “ingerência de conhecimento” em assuntos que só outros poderes podem saber, dentro da Administração e, sobretudo, no âmbito do poder judicial, no caso dos processos criminais.

Tudo isto é ainda devidamente “apimentado” com a submissão de tais respostas ao regime do segredo de Estado. Ora, tal representa a subversão total deste mecanismo delicado, que aqui passa a defender – não os segredos de Estado, como seria suposto –, mas as “intrigas de Estado”, mantendo-se a informação “eficaz”, qual “Espada de Dâmocles”, na pendência do cargo e caso a pessoa venha a ser nele provida.

Numa apreciação perfunctória, saltam à vista os óbices de inconstitucionalidade:

- como obrigar alguém a dizer se está a ser investigado quando o assunto está em segredo de justiça; é um convite à “mentira” institucional?

- de que forma se pode responsabilizar alguém por atos da sua família, dos quais não tem ou não pode saber, pelos quais não deve ser prejudicado, aliás, do foro da sua intimidade privada?

- a que título o candidato a governante tem de dar informações protegidas pela confidencialidade fiscal?

- qual o motivo para dar informações sobre o passado quando o que se pretende é avaliar o comportamento futuro da pessoa, havendo já legislação – que pode ser aperfeiçoada – que acautela essas situações?

Contudo, o mais lamentável pode nem ser nada disto, mas o pressuposto em que este esquema do “inquérito prévio” assenta, que inquina por completo as relações de confiança: o de que as pessoas a escolher, por quem as quer e por quem tem a autoridade para as propor, se “presumem inidóneas até resposta contrário”, tal a natureza e extensão de perguntas ali constantes.

Pior ainda: este instrumento releva a absoluta incapacidade de se acreditar numa única palavra dos políticos, pois que ao nível mais próximo em que se lida com a livre escolha de lugares discricionários se chega ao cúmulo de forçar a redigir um texto escrito, a relevar aspetos que podem não interessar para um mandato futuro ou que, existindo, estão sob o domínio de outros poderes, não significando isso qualquer juízo condenatório.

O autor é escreve segundo o novo acordo ortográfico

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