Sentimento Safari

Cantar “fuck the police” não tem nada a ver com agressões a policias, e que se saiba ainda não há registo de turbas que se apressem a agredir polícias após cada concerto de Julinho KSD.

Em 30 de Agosto de 1994 no Onda Parque na Costa da Caparica, Pedro Abrunhosa e os Bandemónio usaram a música Não posso mais como um ultimato popular ao Governo de Cavaco Silva. Ainda não tinha passado uma semana da carga policial na Ponte 25 de Abril sobre os manifestantes que a bloquearam, como protesto contra o aumento das portagens, em que um manifestante foi baleado e ficou paraplégico.

Ainda durante esse Verão, em sucessivos concertos, Pedro Abrunhosa entoava entre as músicas palavras de ordem como “Não pago” acompanhadas de um manguito.

Dedicatórias mais intensas ficaram para 1995, último ano do cavaquismo. Pedro Abrunhosa lançou o álbum F. cujo single Talvez foder foi amplamente usado como palavra de ordem contra o então primeiro-ministro. Era comum o nome do político ser lançado pelo cantor, para que o público respondesse em uníssono mandando-o para tal prática.

O país de então não é o país de agora, pelo menos na expressão pública de certas palavras.

Apesar de algum choque, boa parte do país acolheu bem o ensejo público de Pedro Abrunhosa, porque não era mais que um sentimento partilhado por muitos, desgastados de dez anos de governação de Cavaco Silva.

E isto a propósito da queixa do Sindicato de Profissionais de Polícia à actuação do artista Julinho KSD na programação oficial de passagem de Ano Novo promovida pela Câmara Municipal de Almada.

Referindo-se em específico à música Sentimento Safari, o sindicato alega que este tipo de performance “em nada contribui para acabar com o sentimento de impunidade no que diz respeito às agressões a polícias”.

A primeira questão a levantar é saber se há, de facto, uma impunidade quanto às agressões a polícias. O sindicato não qualifica o fenómeno, nem me pareça que haja algum relatório independente que o afirme.

Depois há uma questão de forma: cantar fuck the police ” num refrão não tem nada a ver com agressões a policias, e que se saiba ainda não há registo de turbas que se apressem a agredir polícias após cada concerto do artista.

Quiçá, enquanto liberdade de expressão, pôr o público a cantar “fuck the police” num concerto, pode até servir de catarse para uma série de frustrações do quotidiano e, acreditem, os jovens de hoje enfrentam muitas , evitando-se reacções mais violentas.

Julinho cresceu no Casal de São José em Algueirão-Mem Martins (Sintra) – por sinal a freguesia mais jovem do país. No bairro os jovens não têm espaços adequados para o seu lazer. A rua, a praceta tal como foram projectados por arquitectos anónimos que afirmam os dispositivos com o que os demais cidadãos têm de viver são adaptados por quem lá vive para fazer acontecer o necessário (e para saber disso, basta ver o videoclipe). Não há ringue para a prática desportiva e o parque infantil é subdimensionado para a quantidade de crianças que ali vivem.

Casal de São José é um bairro social e enquadra-se naquilo que as forças policiais designam por Zonas Urbanas Sensíveis, onde até a etnia serve como critério para a sua classificação. Na prática isso significa que o bairro é sobrevigiado, não com recurso ao que os cidadãos reconhecem como policiamento, mas sim por intervenções musculadas, realizadas por carrinhas com dezenas de elementos de intervenção rápida ou unidades especiais de polícia, que aplicam um recolher obrigatório e detêm quem não obedece à limitação ditatorial da sua cidadania.

A polícia é quase o único contacto que os jovens do Casal de São José têm com o Estado, um infortúnio depreciativo das nossas políticas públicas, mas que permite entender um “fuck the police” como expressão de um diagnóstico do quotidiano, de que eu, como ouvinte e cidadão, prefiro saber e entender do que mandar calar.

Felizmente, mesmo na contingência da falta, os jovens do Casal de São José resistem e persistem. Só isso explica como um bairro de pequena dimensão, com 142 fogos e menos de quinhentos moradores produza tantos artistas: Julinho, Landim, Harley KSD, Fumaxa, Panurama, Guru Levrai, Tchiko KSD, Dje KSD; e não esperem muito, porque mais vão aparecer.

Talvez o que mais tenha aborrecido o Sindicato de Profissionais de Polícia não tenha sido tanto o refrão de Sentimento Safari cantado por Julinho KSD, mas a correspondência do público aos milhares a cantar em uníssono “fuck the police”. É que, tal como nos anos 90 boa parte da sociedade portuguesa acolheu um Talvez foder a Cavaco Silva, muitos dos milhares que acorreram ao concerto de Passagem de Ano de Julinho em Almada provêm de realidades territoriais análogas às do artista e “fuck the police” é um acolhimento das suas realidades.

Cavaco, que era Cavaco, não ousou em processar Pedro Abrunhosa e nós ficamos aqui na expectativa da tão pedida intervenção do sindicato à Direcção Nacional da PSP e ao Ministério da Administração Interna, lembrando que uma forma de rap – o drill - já aparece este ano criminalizado pelo Relatório Anual de Segurança Interna.

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