Parece ter chegado ao fim um período raro e atípico na história da Igreja Católica: com a morte de Bento XVI, que renunciou ao papado em 2013 e foi Papa emérito ao longo da década seguinte, passa a haver apenas um Papa no Vaticano, Francisco, e não dois. No entanto, o precedente aberto por Bento XVI pode ser seguido pelo actual Sumo Pontífice, e a Igreja Católica poderá voltar a ter duas referências vivas: um Papa em exercício e outro na reforma, na sombra, mas não sem influência. 

O Papa Francisco pode renunciar?

Francisco poderá seguir o exemplo de Bento XVI e renunciar. Logo em 2013, como revelou recentemente ao jornal espanhol ABC, redigiu e entregou ao então cardeal camerlengo da Igreja Católica, Tarcisio Bertone, uma carta de renúncia em caso de incapacidade por problemas de saúde

Publicamente, ainda no início do seu pontificado, Francisco aludiu a essa possibilidade quando elogiou a decisão do antecessor e defendeu a normalização da renúncia papal. Em 2022, voltou a dizer que "a porta está aberta" a essa possibilidade e que não seria "uma catástrofe" se também renunciasse. Ou seja, não faltam indícios de que poderá fazê-lo.

Aos 86 anos, Francisco enfrenta vários problemas de saúde: alguns de longa data, como o facto de viver desde a juventude só com um pulmão (o outro foi removido após uma pneumonia grave); outros mais recentes, como uma dor recorrente numa perna. Desde o Verão de 2022 que o Papa tem aparecido frequentemente de cadeira de rodas ou de bengala, e o seu calendário de viagens tem sido gerido com parcimónia. 

Quão rara é uma renúncia?

Muito rara. Antes da renúncia de Bento XVI em 2013, a mais recente tinha acontecido com Gregório XII em 1417, na época do Grande Cisma e do papado de Avignon, quando a Igreja Católica atravessou uma das suas maiores crises. 

Isso significa que pode voltar a haver dois papas?

Sim, um Papa em exercício de funções e um novo Papa emérito, ou pelo menos um ex-Papa. Não é a mesma situação que a Igreja Católica viveu na altura do Grande Cisma, quando havia um Papa e um anti-Papa, ambos a reclamarem autoridade absoluta e exclusiva sobre os católicos. É antes, como vimos ao longo dos últimos quase dez anos, uma convivência pacífica, ainda que tensa, entre um Papa em funções, como Francisco, e outro numa reforma algo activa, como Bento XVI. 

Neste período recente, o Papa emérito continuou a ser a principal referência da chamada ala conservadora da Igreja Católica, que congrega vários cardeais e hierarquias eclesiásticas de alguns países e regiões, nomeadamente os Estados Unidos, descontentes com a atitude menos tradicionalista de Francisco em relação a temas como o celibato, o divórcio, a homossexualidade ou o combate à pedofilia e a outros crimes e abusos no seio da Igreja.

Apesar de Bento XVI, nascido Joseph Ratzinger, se ter mantido em silêncio no mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano durante a maior parte deste tempo, houve alguns momentos em que foi bastante pública a sua divergência em relação ao Papa Francisco. Em 2020, lançou um livro, em co-autoria com o cardeal ultraconservador guineense Robert Sarah, a defender o celibato num momento em que o Papa em funções admitia aboli-lo para padres em áreas remotas do globo. 

Não é claro que Francisco, a renunciar, adopte também a designação de Papa emérito, nem que continue a viver no Vaticano, como o antecessor. Nem que exerça por vontade própria, mesmo que discretamente, algum tipo de influência na condução dos destinos da Igreja Católica. Mas muito disto dependerá da eleição do próximo Papa. 

Francisco tem nomeado vários cardeais com perfis teoricamente próximos do seu, e estes participarão no processo de decisão do próximo Sumo Pontífice. Mas a eleição papal costuma ser fértil em surpresas, como foi a do próprio Jorge Mario Bergoglio em 2013. Na eventualidade de um novo Papa tradicionalista (como o referido Robert Sarah), a ala mais liberal da Igreja poderá reunir-se em torno de Francisco do mesmo modo que os conservadores continuaram a invocar o nome de Bento XVI.

E como se elege um Papa?

Por renúncia ou não, uma nova eleição papal estará num horizonte relativamente próximo. Participam nela todos os cardeais com menos de 80 anos. Portugal conta com três cardeais com capacidade eleitoral: D. Manuel Clemente, D. António Marto e D. José Tolentino Mendonça. Reunidos em conclave na Capela Sistina, no Vaticano, à porta fechada, deliberam em secretismo total: as chaves são retiradas e é feita uma busca por microfones ou câmaras, num processo conduzido pelo cardeal camerlengo (que detém o poder, interinamente, em períodos de sede vacante - quando não há Papa em funções). Qualquer fuga de informação pode ser punida com a excomunhão. 

O debate sobre os candidatos e o processo de votação podem demorar vários dias. Neste período, os cardeais eleitores dormem num edifício contíguo à Basílica de São Pedro e não podem contactar com ninguém do exterior, salvo emergência médica. No primeiro dia de eleição, os cardeais só podem votar uma vez. A partir do segundo dia, votam duas vezes de manhã e outras duas à tarde, até haver um eleito: alguém que reúna dois terços dos votos, a menos que, em caso de grande impasse ao final de vários dias, se decida escolher o candidato que tiver mais de metade dos votos. Nestes casos de impasse, há um dia de oração e reflexão a cada três de votação. (Curiosidade: qualquer homem maior de idade, baptizado pela Igreja Católica, pode ser eleito Papa.)

Cada voto é escrito à mão, com a designação "Eligio in Summum Pontificem" ("eu elejo como Sumo Pontífice", em latim) e o nome escolhido. Depois de contados, os votos são queimados num forno. É essa a origem do fumo visível na chaminé da Capela Sistina: fumo negro caso não haja Papa eleito, fumo branco quando é finalmente escolhido um novo Papa. Quando o processo é concluído, o decano do Colégio dos Cardeais (o conjunto dos cardeais da Igreja Católica) anuncia a partir da varanda da Basílica de São Pedro que "Habemus Papam" ("temos Papa", em latim). 

Resta saber se Francisco, o primeiro Papa em funções a assistir ao funeral de outro Papa, assistirá também à eleição do seu sucessor.