Quarenta mil carros guardam histórias no meio do deserto

De onde vieram estes veículos? Que história guardam? O que fizeram na vida? Ajudaram o Mundial? Perto de Doha há um local charmoso e sinistro, com carros que ainda guardam traços de secularidade.

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O ferro velho de Al Wukair DCO
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A cerca de 25 minutos de Doha existe um sítio ermo e sinistro, no meio do deserto. Pouco ou nada acontece por ali, a não ser calor, vento, silêncio, muito pó e um ou outro latir canino. Não é um local turístico, longe disso, algo que fica claro pela pergunta do motorista do Uber: “De certeza que é aqui que fica?”.

Era mesmo ali. Ali, no ferro velho de Al Wukair, local que pelo número de veículos que por lá estão faz pensar se não é lá que desaguam todos os monos motorizados do Médio-Oriente e arredores.

Vinte dias depois de chegarmos ao Qatar, podemos dizer que este é um dos sítios mais interessantes que vimos. Não é bonito e não dá sequer ares de Qatar, um país cada vez mais aplicado no ímpeto moderno e vanguardista das suas construções.

E até podemos dizer que é algo sinistro, que o lado sombrio de todo aquele ambiente chega a ser assustador, sobretudo para um europeu citadino no meio do nada.

Porém, tem algum charme. O que há de charmoso num monte de carros sujos? São veículos cobertos de pó, bem organizados em fileiras numa longa espera por uma nova vida. Outros esperam apenas por um fim – e pode ser mais digno ou mais dramático. E também esse desfecho tem que ver com a história que os levou até ali.

Nem todos para leilão

Por ali há carros pequenos, médios e grandes. Há motos e jipes. Também há camiões, muitos autocarros, escavadoras, algumas motos de água e uma boa variedade de barcos. E areia – nuns sítios perfeita e soltinha, noutros com lixo automóvel e pedaços de veículos.

Num momento de pura fortuna, quando nos aproximamos da entrada está a chegar, de reboque, uma carrinha de caixa aberta. Para a cidade, é um veículo velho. Para este sítio, é um veículo novo. O mais recente morador.

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De onde veio? Que história conta? Não sabemos. Mas provavelmente ficará por cá muito tempo. “São carros que pertencem ou pertenceram a pessoas. Podem vir de acidentes, terem sido abandonados ou rebocados, porque há pessoas que não limpam os carros. Normalmente ficam por cá uns seis meses. Se ninguém os reclamar, depois o caso vai para tribunal e eles decidem se é leilão, vender ou destruir”, explica Harman, o guarda que é a única pessoa presente naquele local.

Os casos de leilão ou venda aplicam-se sobretudo aos clássicos, que ficam alojados numa parte VIP do ferro velho. Até num sítio destes o privilégio tem de funcionar. Para os carros “banais”, o fim pode ser a destruição pura e dura, para reutilização, ou eventual reaproveitamento de peças.

Neste sítio há um pouco de tudo. Carros velhos, a pedirem reforma. Carros destruídos. Carros semi-destruídos. E carros impecáveis – são esses os que mais inquietam, sobretudo aqueles que ainda têm objectos pessoais ou traços de secularidade que vão das naturais marcas de uso até objectos como garrafas, pacotes, peças de roupa ou óculos.

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“Temos todo o tipo de carros. E todos os dias vem cá alguém reclamar um carro. Mas não é fácil. Há um procedimento: trazer os documentos do carro, muitos detalhes e muita papelada”, detalha Harman.

“Como ponho comida na mesa?”

O que é que este sítio tem que ver com o Mundial 2022? Pouco ou nada. A única coisa que liga este ferro velho ao certame qatari é a presença de veículos que ajudaram a tornar o Mundial possível.

“Sim, há aqui qualquer coisa. Há camiões usados na construção dos estádios. Pelo menos dois ou três sei que há. E alguns veículos que transportaram materiais também”, explica o guarda.

É um simpático queniano que nos conta que estão por ali entre trinta e cinquenta mil carros – se tivéssemos de apostar, avançaríamos com um número bem maior, mas Harman saberá do que fala.

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Trabalha ali há dois anos e questionado sobre se gosta do que faz, mostra-se resignado: “Mesmo que não goste, vou fazer o quê? Até posso não gostar, mas como vivo? Como ponho comida na mesa? Não é um mau local, não há muita pressão. É calmo”.

Lá calmo é, sem qualquer dúvida. E não é desprovido de emoção. Harman conta que, um dia, receberam um carro que era um Ford igual ao que o seu pai conduzia no Quénia. Diz que foi o melhor momento que teve.

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