Aos que irão fazer Erasmus

Vale a pena, tal como uma taça de vinho, viver esta experiência — mas não vale a pena ir para voltar deprimido, perdido e vazio.

Foto
Joshua Earle/Unsplash

Como um verdadeiro arquétipo de um estudante de humanidades, fiz a minha trouxa e atravessei o Mediterrâneo para estudar na Península Itálica, algures nas planícies da Toscana. No meu coração uma exaltação de quem abandona o seu país pela primeira vez e na minha mente imagens de invasores Lombardos e dos elefantes de Aníbal Bárcida a atravessar os Alpes para destruir de uma vez por todas o Estado romano.

Não tinha objectivos destrutivos com este intercâmbio que homenageia, por alguma razão, o humanista Erasmo (de Roterdão, não o Carlos), mas sim uma ideia muito generalizada feita em cima do joelho do que eu queria viver. O êxtase de Erasmus, as noitadas constantes, a cultura, a diversidade de línguas e de contextos culturais, as imensas possibilidades que estes seis meses podem trazer — esta visão quase hagiográfica de histórias que contarei aos meus filhos, que partilharei com amigos entre cervejas e cigarros… tudo porque há qualquer coisa no acto de morar fora do teu país sem o compromisso de uma permanência alargada que desperta até nos mais passivos uma vontade inexorável de agarrar a vida pelos cornos.

Escrevo isto no meu apartamento frio em Siena (a pobreza energética não existe apenas em Portugal), sabendo que, de momento, estou a pouco mais de meio da minha experiência de Erasmus, tendo chegado a Itália em meados de Setembro. O único plano que tinha era escrever algo sobre a experiência após retornar a Portugal, mas nos últimos dois meses e meio aprendi coisas sobre mim e sobre estudar fora que acho que não são temporárias nem fugazes — o que me investe de uma certa autoridade para escrever sobre o assunto.

Primeiramente, vou deixar bem claro que fazer Erasmus vale mesmo muito a pena. Da candidatura a ser aceite o processo é chato, mas não é difícil — será marcado por longas semanas sem informações consistentes ou sequer grandes confirmações de que realmente irá acontecer. Os meses que antecedem a viagem são definidos por este constante paradoxo de saber que nos vamos pisgar em Setembro, mas sem ter bem a certeza de que realmente acontecerá. Vale a pena, mas não é para todos. Não sou eu que o digo, mas sim a realidade desigual e injusta do nosso sistema económico — especialmente em Portugal.

Chegados ao país escolhido, a não ser que a pessoa seja proprietária de uma choruda conta bancária, os gastos são impossíveis de suportar: é esperado do estudante que compre os bilhetes de avião, comboio, autocarro, que pague as cauções, primeiras rendas, comida e quaisquer outros gastos que vêm com a experiência. A bolsa? Sim, ela existe, mas é, como me disse um membro do secretariado de intercâmbios da minha faculdade, “insuficiente”. Eu prefiro os termos “miserável” e “estupidamente insensível para com o impacto de que ir para outro país tem nos bolsos das famílias pobres, trabalhadores-estudantes, desempregados, bolseiros, etc.” — conceito grande, mas verdadeiro. Assim, todos querem fazê-lo, e todos são motivados a fazê-lo pelas famílias, professores, Governo e faculdades — mas ninguém parece querer abordar o facto de que ir de Erasmus é, por definição, uma experiência elitista.

Deixando de lado as realidades materiais, falemos sobre a experiência em si. É divertido, sim senhor, mas há algumas coisas que é importante saber antes de ir embora. O FOMO (fear of missing out, medo de ficar de fora, em tradução para português) não é apenas real, é corrosivo. Ao redor do estudante, uma turba de estrangeiros, de acontecimentos, de festas e de encontros sociais acontecem sem qualquer consideração pelo relógio emocional e biológico da pessoa.

O primeiro mês é passado de bebedeira em bebedeira, de festa em festa, de grupo em grupo, uma busca desesperada por convergência e por conexões que se pauta pelo “Hey, what ‘s your name?/Where are you from?/What do you study?”. Ao fim de duas semanas, foram vividos quatro anos, a carteira está vazia, a depressão retornou e o vazio existencial é maior do que nunca. Porque por alguma razão podes conhecer pessoas novas todos os dias, levar pessoas para dormir contigo depois de uma mágica noite e até encontrar um “grupinho provisório” (muito comum nos primeiros dias), mas a solidão impossível de ser um estudante de Erasmus é presente e vive contigo todos os dias.

No fundo, este choque deve-se à ideia que nos é imposta pelos que vieram antes, de que o Erasmus não é uma experiência — é a experiência. É suposto que seja a melhor coisa já vivida até aquele momento, seis meses de crescimento e de constantes memórias a ser criadas, de conexões feitas e de grandes momentos vividos. Mas a realidade muito rapidamente deita-se na cama connosco, quando nos apercebemos de que conhecer pessoas pelo simples motivo de conhecer não é uma conexão, e de que nunca parar mais do que uma hora em casa não é uma “vida louca”, mas sim a nossa solidão a gritar por socorro àquela parte do cérebro que em casa conseguir equilibrar a vida social com a emocional.

Deixo, portanto, esta simples ideia a quem está a pensar ir ou quem submeteu agora a sua candidatura: estes seis meses não têm de ser os melhores da tua vida. Ir de Erasmus não significa deixar de ser humano por causa da sua grande intensidade num espaço tão curto de tempo, mas sim continuar a ser a nossa pessoa noutro país e noutro contexto. O futuro estudante de Erasmus irá chegar a esta conclusão quando estiver a beber com amigos num bar com duas horas de sono nos últimos dois dias, trabalhos em atraso e uma crise emocional, apenas porque tem a ideia de que “eles estão a criar memórias sem mim” ou que “se eu ficar em casa hoje estou a desperdiçar a minha experiência”.

Independentemente do que defina a experiência de Erasmus, será no futuro uma belíssima memória, nem que seja pelo simples facto de que foste para outro país, o que por si só já é um desafio. Os medos desesperados de não estar a viver a vida à flor da pele em Erasmus não farão mais sentido quando o tempo passar e te aperceberes de que o que realmente ficou foram as pessoas (nem sempre muitas) que amaste e que conheceste, as experiências que escolheste viver e que não te foram impostas pela tua ansiedade social e as coisas que aprendeste sobre ti naquele que é, para muitos, a primeira vez a morar fora do país ou até da casa dos pais. Vale a pena, tal como uma taça de vinho, viver esta experiência — mas assim como beber, deve ser vivida com moderação e uma dialéctica constante com a saúde mental. Não vale a pena ir para voltar deprimido, perdido e vazio.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários