Drogas extremas, medidas extremas

Nesta extrema situação que acomete os Açores (e também a Madeira), é hora de se convocar uma nova “task force”. É hora de dar uma resposta proporcional à escala extrema do problema.

Quando, no fim dos anos 90, Portugal era notícia pelos elevados índices de infeções por VIH e de consumo de heroína, instalou-se o alarme social e ficou evidente a urgência de uma resposta proporcional à escala extrema do problema.

Em grande medida, aquelas transmissões virais ocorriam entre os consumidores de drogas por via injetável e a dimensão do problema foi de tal ordem que obrigou os decisores políticos da época a agir. Foi assim que se avançou para a criação de uma “task force”, como agora se usa dizer. Da reunião destes peritos vindos do terreno, conhecedores da realidade da toxicodependência dos grandes centros urbanos e habituados ao contacto direto e diário com a população consumidora, nasceu um conjunto de medidas que, embora óbvio e necessários aos seus olhos, terá seguramente sobressaltado políticos menos preparados para um pacote tão ajustado quanto “fora da caixa”.

Aquela comissão tinha sugerido, entre outras ações, a descriminalização do consumo de drogas – imagine-se só descriminalizar o consumo de qualquer droga, mesmo as ditas “drogas duras”, como a devastadora heroína. Segundo constou, terão até tocado alarmes nas Nações Unidas perante o carácter inovador – ou talvez melhor dito, ameaçador – de tal proposta, temendo-se a inauguração de novo paraíso para toxicodependentes e traficantes de droga em Portugal e a explosão de novos casos de VIH.

“Situações extremas exigem medidas extremas”, e embora à data, tais medidas fossem facilmente consideradas extremas, honra seja feita ao governo socialista que as terá arriscado implementar na íntegra, apesar da oposição interna e da internacional, mesmo ao mais alto nível. Porém, menor honra não teve o governo seguinte, de direita, ao manter tamanha ousadia. Foi assim que em 2000 passou a vigorar a Lei n.º 30/2000 que veio descriminalizar a posse e o consumo de droga, conseguindo transferir-se assim da esfera da Justiça para a da Saúde o ónus da intervenção sobre a toxicodependência e problemas afins.

Os resultados destas medidas não terão surpreendido os peritos que as tinham pensado. Aliviou-se a pressão sobre as polícias, o sistema judicial e os estabelecimentos prisionais, dinamitou-se a tendência crescente de infeções por VIH e começou, finalmente, a poder tratar-se de forma global aqueles indivíduos com o que chamaria um “triplo diagnóstico”, i.e., doentes adictos a alguma droga que, concomitantemente, padecem de uma outra doença mental (Esquizofrenia, Doença Bipolar, Perturbação de Stress Pós-Traumático etc.) e ainda, com elevada probabilidade, também portadores de alguma doença infecciosa, relacionada com os antecedentes consumos injetáveis ou com outros comportamentos de risco.

Passaram mais de 20 anos desde a entrada em vigor desta lei. Lisboa, entretanto, passou a sediar o principal observatório europeu da droga e da toxicodependência e é frequentemente a Meca a que especialistas e estudiosos de todo o mundo acorrem, interessados em conhecer e estudar o que se tornou globalmente conhecido como o “modelo português” de combate à droga.

Nos Açores, com as vulgarmente chamadas “drogas sintéticas”, mas também na Madeira com o “bloom”, vivemos um novo alarme social relacionado com a toxicodependência. O vertiginoso aumento do consumo de Novas Substâncias Psicoativas (NSP), particularmente as de perfil estimulante como a Mefedrona entre muitas, muitas outras NSP, levou a um inquietante crescimento de um largo leque de problemas. São disso exemplos, o crescimento da pequena criminalidade mas também do crime violento – nomeadamente da violência doméstica –, a sobrelotação das prisões por crimes associados ao tráfico de droga, o assombroso número de pessoas em situação de sem-abrigo, a omnipresente mendicidade nas ruas do centro de Ponta Delgada e a extrema dificuldade na sua reintegração social, a prostituição, o início dos consumos em adolescentes menores de 14 anos, as recorrentes idas ao serviço de urgência dos utilizadores de NSP por manifesta desorganização do comportamento, agressividade, delírios e alucinações, os internamentos na Casa de Saúde para desintoxicação, os encaminhamentos para Comunidades Terapêuticas no Continente, as trágicas mortes por suicídio nos consumidores de NSP – que em 2021 já correspondiam a 1/3 dos suicídios em São Miguel –, ou mesmo, as mortes por overdose ou na sequência de comportamentos violentos ou acidentes.

É inegável o tremendo impacto que esta realidade tem nas famílias e na sociedade micaelense, em geral. Os media têm veiculado a precipitada tentação de alguns, desconhecedores da abordagem destas problemáticas, em obrigar ao tratamento e internar contra a vontade, ou mesmo de punir judicialmente quem tanto se prejudica a si próprio e perturba a ordem social e a economia locais. No entanto, estamos a falar de pessoas como nós, embora doentes – muitas vezes não diagnosticadas e por isso não tratadas –, a precisar de amplo e musculado apoio em quase todos os domínios – na higiene pessoal, alimentação, habitacional, saúde física e mental, reabilitação social e, sempre que possível, também na formação e reinserção profissionais. Como tão bem se tem verificado desde 2000, não será punindo nem excluindo da sociedade que se avança na resolução destes problemas.

Nesta extrema situação que acomete a nossa Região Autónoma (e também a Madeira) é hora de se convocar uma nova “task force”, à moda da do sr. vice-almirante Gouveia e Melo. É hora de reunir um punhado de gente vinda do terreno, multidisciplinar, abrangente mas coordenada, conhecedora das realidades regionais da toxicodependência e da rede de respostas existente, que se baseie nos mais atualizados conhecimentos científicos e nas idiossincrasias locais e não em ideologias nem em medidas importadas e “prontas-a-vestir”, a quem os decisores políticos em desejável consenso alargado ousem ouvir e que, à semelhança dos decisores nacionais doutros tempos, ousem corajosamente implementar na íntegra o conjunto de medidas que aqueles peritos lhes venham a recomendar. É hora de dar uma resposta proporcional à escala extrema do problema.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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