Toxicodependência e uso de drogas

Os consumos de produtos de cannabis são já os que motivam o maior número de pedidos de tratamento e há consumidores muito problemáticos,que recaíram, sobretudo de heroína e de apresentações baratas de cocaína,

Quase invariavelmente, quando converso acerca dos temas de que me ocupo (com jornalistas ou outros cidadãos), a dado passo lá vem a pergunta: “afinal, a toxicodependência em Portugal está a aumentar ou a diminuir?” E a resposta costuma causar alguma perplexidade: “O uso de drogas está estável ou em ligeira queda, a toxicodependência tem estado claramente a diminuir.”

De facto, embora comumente usadas quase como sinónimos, falamos de coisas diferentes. Se pensarmos, por exemplo, no uso do álcool, é mais fácil fazer a destrinça: assumimos que muitos portugueses consomem bebidas alcoólicas, sem que por isso os rotulemos necessariamente como alcoólicos.

Os problemas relacionados com o uso ilícito de substâncias psicoativas ganhou expressão em Portugal bastante mais tarde do que na maioria dos países europeus, e sobretudo depois da nossa revolução democrática; de alguns movimentos que ocorreram noutros pontos do mundo, como as manifestações hippie, chegaram-nos ecos muito filtrados. A eles estavam associados os consumos de algumas substâncias. Num país fechado e isolado, e também completamente impreparado para lidar com este fenómeno, as “drogas” foram algo que veio e que estava associado à ideia de liberdade.

Enquanto outras sociedades tiveram a possibilidade de se adaptarem paulatinamente à presença das drogas no seu seio e lhes foi possível desenvolver ações de informação e prevenção, entre nós a súbita disponibilidade, a repentina possibilidade de viajarmos e de sermos visitados pela juventude de outras paragens, associada à avidez por experimentar coisas novas numa sociedade que passava por rápidas mudanças nos costumes levou a uma explosão na experimentação. O que estava mais disponível eram os produtos de cannabis, mas rapidamente o mercado passou a oferecer todas as outras (cocaína, heroína). A passagem de umas para as outras era facilitada pela quase total ausência de informação.

Assim, embora sempre tenhamos tido uma das mais baixas prevalências do consumo ilícito de substâncias na população geral no contexto europeu, rapidamente cresceu entre os utilizadores de drogas a percentagem de consumidores problemáticos, entendidos como consumidores de droga injetada ou com consumos prolongados/regulares nos últimos 12 meses. Estimativas do início dos anos 90 apontam para a existência de 100 mil consumidores com estas características (1% da nossa população!) distribuídos por todos os grupos sociais, embora com maior impacto nos mais fragilizados. A SIDA veio complicar ainda mais esta realidade, com as consequências que todos conhecemos.

Assumida como uma das principais preocupações dos portugueses, os problemas da droga e da toxicodependência foram-no também enquanto prioridade da intervenção política, e foi possível desenvolver políticas progressistas e eficazes para os enfrentar. A centralidade das abordagens aos consumidores foi atribuída às estruturas da Saúde e da área Social (e, em consonância, os consumos foram descriminalizados e criado o dispositivo da Dissuasão, medidas arrojadas e inovadoras que ainda hoje merecem a admiração e o estudo internacionais). Foi possível oferecer tratamento a todos os que o procuravam, buscar ativamente aqueles que não se mobilizavam espontaneamente e enquadrá-los através das estruturas de redução de danos, contribuindo para uma melhor esperança e qualidade de vida, desenvolver medidas de descriminação positiva para o emprego de dependentes em tratamento, alargar os programas de prevenção.

Os impactos negativos mais problemáticos nesta população, como as novas infeções pelo VIH, as mortes por overdose, a pequena criminalidade aquisitiva, foram decaindo e começa a notar-se a preponderância de outro tipo de consumos, mais “utilitários”, ligados ao desejo de potenciar o prazer em contextos de diversão (cannabis, ecstasy, cocaína, novas substâncias psicoativas) e menos marcados pela degradação e pela dependência. Embora seja óbvio que só fica dependente quem consome e que há sempre a possibilidade de as substâncias se tornarem na única fonte de prazer que o indivíduo é capaz de sentir, o facto é que o número de consumidores problemáticos, sobretudo dos que não recorriam às estruturas de apoio, foi decaindo e os progressos na saúde individual e colectiva, na visibilidade e impacto na nossa sociedade foi diminuindo, caindo também na escala das prioridades políticas.

Costumamos dizer que as estruturas dedicadas a estes problemas trabalham para a sua própria extinção. A inclusão no seu mandato dos problemas ligados ao álcool e, mais recentemente, de comportamentos aditivos sem substância, como o jogo, veio permitir o aproveitamento destas estruturas e dos seus profissionais para novos desafios.

Continuamos a assistir a uma evolução globalmente positiva em todos os indicadores: o retardar da experimentação, a diminuição das prevalências de consumo na população em geral, das infecções pelo VIH e hepatites, número de overdoses baixo no contexto europeu, a percentagem de consumidores problemáticos no total de utilizadores. Os consumos de produtos de cannabis são já os que motivam o maior número de pedidos de tratamento, o que indicia uma menor presença de substâncias outrora preponderantes.

Contudo, e sem que tal tenha para já grande reflexo nos resultados dos estudos disponíveis, podemos observar que recentemente (e a crise que vamos atravessando não será alheia a este fenómeno) volta a aflorar uma realidade que marcou o final dos anos 90. Não se trata agora do desejo de potenciar o prazer, mas da tentativa de aliviar o sofrimento. Muito à custa de “velhos” consumidores que viram degradar-se as suas condições de vida e que recaíram, mas também de novos consumidores comparáveis aos dos velhos “Casais Ventosos”, há novas franjas de consumidores muito problemáticos, sobretudo de heroína e de apresentações baratas de cocaína, que exigem novas respostas e um reforço e uma mais perfeita articulação entre as actualmente existentes. É fundamental que volte a haver atenção política para o tema, sob pena de recuo naquilo que foi um dos maiores sucessos nas políticas públicas portuguesas.

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