A inteligência em campo

Ao longo do século passado, teremos aprendido a pensar de forma mais complexa, abstrata e especulativa.

Nos anos 80, o cientista e investigador neozelandês James Flynn (1934 - 2020) descobriu que o QI subiu em média três pontos por década durante o século passado, o que representa um aumento de cerca de 30 pontos ao longo de 100 anos. A tendência passou despercebida durante muito tempo porque os testes de QI eram atualizados de forma rotineira para garantir que uma pessoa de inteligência média obtivesse 100 pontos no teste. O cientista descobre aí um incremento mensurável ao longo do tempo, que fica conhecido por Efeito de Flynn.

Se uma pessoa do início do século XX fizesse um teste de QI de 2022, obteria uma pontuação provável de 60/70 pontos, valor próximo da indigência. Alguém que hoje faça testes de QI das primeiras duas décadas do século passado obterá resultados de 130/140 pontos, perto da genialidade.

Flynn, no entanto, observa que as progressões mais relevantes acontecem nos dois subtestes que exigem raciocínio abstrato, Semelhanças e Matrizes. Nos testes de vocabulário, por exemplo, existem melhorias, mas muito menos expressivas, passando-se o mesmo em tarefas que envolvem raciocínio matemático. Em Semelhanças, fazem-se perguntas como: “O que têm os cães e os coelhos em comum?” Se a resposta for “Ambos são mamíferos”, está-se a pensar conceptualmente, classificando os animais por tipo. Se a resposta for “Os cães caçam coelhos”, está-se a pensar concretamente, sem recurso a conceitos adquiridos sobre o mundo. No subteste de Matrizes, deduzem-se padrões e identificam-se peças em falta, testando a capacidade de ver ligações complexas.

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O cientista e investigador neo-zelandês James Flynn International Society for Intelligence Research

Outro desafio pode consistir em ordenar uma sequência de imagens soltas de modo a produzir sentido. É na resolução deste tipo de problemas que a inteligência humana, tal como é avaliada em testes de QI, tem vindo a progredir. Ao longo do século passado, teremos aprendido a pensar de forma mais complexa, abstrata e especulativa. Para James Flynn, estão a emergir “novos hábitos mentais onde levamos aquilo que é hipotético a sério, imaginando como poderia ser, sem nos limitarmos ao que existe”.

Por hipótese, o Efeito de Flynn explica-se com a deslocação de uma economia agrária e industrial para uma economia baseada na informação; em vez de lidar com vacas, arados e maquinaria, hoje cerca de 45% da população lida com palavras, números, símbolos e conceitos, contra 3% do princípio do século. A escolaridade e a disseminação do pensamento científico são outras possíveis explicações. Sabemos que mulheres, homens, negros, brancos e pessoas LGBTQ+ pertencem à categoria de “humanos"; e sabemos que se agregarmos os animais estaremos perante a categoria mais abrangente de “seres vivos”.

Ainda que não tenhamos progredido nos testes de Informação e Vocabulário — e que nos possa faltar inteligência discursiva —, observe-se a lucidez com que o mundo, Portugal incluído, recentemente se apercebeu das matrizes entre direitos humanos, futebol e poder político. A valoração dos direitos humanos, em si uma abstração, decorre da inteligência em campo.

No entanto, para mal dos nossos pecados, estudos recentes parecem indicar uma diminuição no Efeito de Flynn, sem avanços assinaláveis nos últimos 20 anos. Ainda é cedo para confirmar a tendência, mas esta existe. Para já, o que sabemos com grande certeza é que nas próximas décadas vamos precisar de toda a inteligência colaborativa do mundo. Numa espécie de atualização dos preceitos existenciais — num devir incremental —, bem se podia inserir um artigo na Declaração dos Direitos Humanos a consagrar o direito a uma vida inteligente.

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