Português desfocado

A revolução de Abril parece não ter mudado grande coisa num povo amargo, habituado ao atraso social, económico e cultural.

Vivemos um tempo em que o português tem de si uma imagem hipertrofiada e insensata.

O mapeamento que a mente faz para a criação de imagens é adulterado por sentimentos e subjectividades que nada têm a ver com a realidade. Há, parece haver, uma confusão entre a realidade, o sonho do passado e o sebastianismo que grassa no nosso povo à boleia de uma preguiça endógena.

Vivemos, no passado, um tempo de patriotismo e nacionalismo que desaguavam num corporativismo que era, sempre foi, um desígnio do antigo regime. Se alguma dúvida ainda possa existir, basta lembrar os “heróis do mar”, “nobre povo”, para ter a noção da anestesia colectiva, da “socialização” da mediocridade, do irrealismo da nossa vivência que levou Eduardo Lourenço a dizer que os portugueses viviam numa “Disneylândia”, não num país real. Parece que este continua a ser o nosso desígnio, adubar o fosso entre a realidade e um passado que tivemos, um verdadeiro orgulho, há cerca de quinhentos anos.

São dessa época os “heróis do mar” dos descobrimentos, os artesões de um império que desfizemos quase como uma libertação, finalmente era tempo das crianças deixarem de decorar na escola os rios e os caminhos-de-ferro dos mapas de Angola e Moçambique. De resto, a revolução de Abril parece não ter mudado grande coisa um povo amargo, habituado ao atraso social, económico e cultural, contudo, incomodado com os milhares de retornados que alteraram o pacifismo e ronceirismo a que sempre se dedicou.

Nestes quase cinquenta anos tivemos uma unidade curricular de ideologia, temos acompanhado o desenvolvimento cultural na Europa, escorregando cada vez mais para a sua cauda, sobrevalorizando a informação internacional, menosprezando, contudo, a sua aplicabilidade em Portugal. Um bom exemplo é a inexistência de escolas médicas privadas em Portugal, algo que vemos pela maior parte da Europa, mostrando bem a tacanhez, a incapacidade de reestruturar a imagem de um país que devia aspirar a um futuro melhor. Haverá um motivo “ideológico” que paralisa os nossos governantes, mesmo tendo em conta que as escolas médicas públicas estão com excesso de alunos e professores voluntários? Que o dinheiro escoa para fora do país em propinas e gastos próprios de centenas de estudantes que prosseguiram estudos no estrangeiro?

Em artigo de opinião recente, Isabel do Carmo pergunta em que estadio anda o registo de saúde electrónico, em uso em vários países europeus, nomeadamente na Noruega, Suécia, Dinamarca, Reino Unido e Região Autónoma de Barcelona. Dá-nos, ainda, a informação sobre os 1383 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destinados ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), gastos, até agora, em “equipamentos pesados”, dezoito mil computadores pessoais, trinta mil telefones e dois mil e quinhentos kits de telessaúde programados. Refere, ainda, “se foi dada a possibilidade de discussão, também tem de ser dada a possibilidade de fiscalização”.

Segundo a Pordata, 43,5% dos portugueses recebem um vencimento mensal que ronda 0s 554 euros, o limiar da pobreza. Apesar da ajuda estatal, constata-se que um em cada cinco habitantes encontra-se em risco de pobreza. Será admissível que a TAP tenha, até agora, absorvido 3,2 mil milhões de euros do erário público pago pelos contribuintes?

Num interessante artigo de Nuno Santos, “Ser cientista em Portugal: um novo rumo para o futuro”, somam-se investigadores cotados que não conseguem emprego em Portugal, com a escassa taxa de sucesso nos concursos de projectos em todos os domínios científicos. A consequência é óbvia, a imigração de investigadores, sobretudo os melhores, na procura de sucesso pessoal e profissional.

Num outro artigo de opinião da actual ministra Elvira Fortunato, surpreende a decisão de financiar projectos de investigação portugueses “rejeitados” na Europa, com um tecto máximo de 250 mil euros. Afinal, onde está a nossa competitividade na Europa?

Quando ligamos a televisão, metade, ou mais, do tempo dos telejornais gasta-se com o sucesso e importância dos nossos governantes na Europa, algo que só pode interessar a “ideólogos” e a comentadores que ainda não passaram o tempo das imagens hipertrofiadas e insensatas.

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