A Cimeira Luso-Espanhola e a “Diplomacia da Água”

Muita gente fala, mas quem está legitimado para falar fica em silêncio, alimentando na opinião pública os sentimentos bélicos face ao problema da água que, no fundo, é comum a todo o planeta.

Terminou no passado mês de setembro o ano hidrológico 2021-2022, deixando ao seu passo um dos maiores períodos de seca de que há memoria na Península Ibérica e um rasto de manchetes nos jornais, fotos de leitos de rios secos e imagens e sons da rádio e TV sobre como os “espanhóis roubam a água…” (disseram a jusante) e “os portugueses querem a água toda para eles” (disseram a montante) vaticinando todos que “…a próxima guerra entre Portugal e Espanha será por causa da água”.

No entanto, leituras mais atentas e vozes mais credíveis revelam que, afinal, haveria um “pacto secreto” (ou confidencial) no seio de uma Comissão Luso-Espanhola (da que pouco se ouviu falar), a CADC (Comissão para Acompanhamento e Desenvolvimento da Convenção). Este pacto teria consistido numa suspensão provisória do Protocolo Adicional da Convenção de Albufeira – onde se estabelecem os caudais mínimos que Espanha deve entregar a Portugal em cada ano hidrológico – devido à impossibilidade factual de cumprir os mesmos sem colocar em perigo o abastecimento de água para consumo humano em algumas regiões do outro lado da raia. A Convenção permite esta suspensão da obrigação do cumprimento do regime de caudais? Sim. Mas para tal Espanha deve declarar estado exceção. Vamos então conferir se tal declaração existe no site da CADC: http://www.cadc-albufeira.eu/pt/ (ou http://www.cadc-albufeira.eu/es/).

As últimas atas desta comissão são a de uma reunião realizada no Porto, a 27 de novembro de 2017 (no site português) e outra (no site espanhol) realizada em Madrid, a 25 de outubro de 2018. Desde esse ano que não se pode saber, através de fonte fidedigna e oficial, o que se decide (ou não se decide) na CADC. Assim, se houve (ou não) declaração de estado de exceção por parte de Espanha (declaração esta que justificaria o incumprimento dos caudais acordados) a mesma está “no segredo dos deuses”.

Entretanto, todos falam, pois todos têm liberdade de opinião: ONGA, cientistas, ex-membros ou membros em exercício da delegação portuguesa e espanhola da CADC, do CNA e, inclusive, membros dos governos. Assim, ao problema da seca une-se o que os ingleses denominam o problema das “many voices”. Isto é, muita gente fala, mas quem está legitimado para falar fica em silêncio, alimentando na opinião pública os sentimentos bélicos na resolução do problema da água, que, no fundo, é, um problema comum a todo o planeta: a adaptação às alterações climáticas.

Com as chuvas de outono as vozes críticas diluíram-se. A “guerra da água” já não é notícia. Voltámos a olhar para a guerra da Ucrânia. Provavelmente, não se ouvirá falar da Convenção de Albufeira até à próxima seca. Mas a seca é cíclica e, portanto, conjuntural, a escassez de água é permanente e sabemos bem que cada vez haverá menos disponibilidade. A este problema estrutural deve-se procurar uma resposta do mesmo calibre. Alguns apostam nas velhas soluções (mais barragens, mais transvases), outros nas novas tecnologias (mais reutilização, mais dessalinização). Mas nem as velhas nem as novas tecnologias serão suficientes, se não existir uma boa governança da água. Isto é, se não fazemos da CADC numa instituição robusta, aberta e credível que fale a uma só voz pelos nossos rios comuns.

Na próxima Cimeira Luso-Espanhola, já nesta sexta feira, 4 de novembro, (em Viana de Castelo), falar-se-á de tudo um pouco, mas: será que a CADC estará representada? Será que podemos estar “na guerra da água” e “na paz do gás”?

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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