“A injusta remuneração de quem trabalha a terra afasta muitas pessoas” do Douro

Uvas pagas abaixo do custo de produção afastam as pessoas da viticultura e ajudam a explicar a falta de mão de obra no Douro. ProDouro defende fixação de valor “justo”. IVDP não se compromete.

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Tiago Lopes

Duarte Sequeira põe 40 carrinhas na estrada todos os dias de madrugada para transportar equipas de trabalhadores para as vinhas do Douro. Oriundos de vários concelhos, de dentro e de fora da região demarcada. Dá emprego a 120 pessoas todo o ano e ainda cultiva 50 hectares próprios na região. Vende essas uvas – “200 pipas de tinto e 150 de branco” – para produção de vinho tranquilo.

O empresário, 40 anos, tem na ponta da língua os valores médios das facturas que tem de liquidar no final de cada mês. Entre salários, Segurança Social, IRS, seguros de acidente de trabalho e dos veículos, tributação autónoma e outros encargos regulares, o dono da Dfsequeira queixa-se do preço dos combustíveis nos últimos meses. Da “falta de gente dedicada e qualificada para trabalhar”. E de como “é muito difícil contratar pessoas novas para a agricultura” e, ainda, “competir com o Rendimento Mínimo”. Já lá vamos.

Antes de eclodir a guerra na Ucrânia, Duarte Sequeira “gastava em média 12 mil euros por mês em combustível”. Agora, a conta “já passa dos 17 mil euros”, contou ao Terroir por telefone na última quinta-feira, na véspera de participar num colóquio organizado pela Associação dos Viticultores Profissionais do Douro (ProDouro) dedicado ao trabalho e à sustentabilidade social e económica do Douro e que levou ao auditório municipal de Sabrosa mais de 200 pessoas, entre viticultores, engarrafadores, comerciantes, responsáveis políticos e associativos da região.

“Tenho carrinhas que fazem 50 mil quilómetros por ano e outras 20 mil e 30 mil, conforme os trajectos e os concelhos onde vou buscar as pessoas”, diz. Paga aos trabalhadores mais indiferenciados o salário mínimo nacional e subsídio de alimentação (“4,77 euros por dia”) e duodécimos de subsídio de férias e Natal e remunera “um pouco melhor” os mais especializados.

Duarte mantém esta força de trabalho todo o ano. “Fora das semanas das vindimas, oriento-os para outras tarefas na agricultura”. Presta serviços a várias empresas vitivinícolas no Douro – Quinta Nova, Sogrape, Quinta da Pacheca, Quinta de S. José, Quinta da Vacaria, Quinta da Devesa, entre outras – e também na região dos Vinhos Verdes, onde um dos seus clientes é a Aveleda.

“O problema é que há pessoas que não querem trabalhar para não perderem o Rendimento Mínimo e a isenção das taxas moderadoras nos hospitais ou, então, querem andar ao negro, a trabalhar sem fazer descontos”, lamentou, em conversa com o Terroir, garantindo que recusa trabalhadores nessas condições. “Não arrisco empregar e transportar pessoas clandestinamente.” Lamenta é que “muitos trabalhadores se levantem às cinco da manhã” e façam “dezenas de quilómetros por dia” e, depois, haja “quem se levante às nove e vá ao café tomar o pequeno-almoço”. Duarte já abordou pessoas que recebem apoios sociais para trabalhar na sua empresa nos picos de trabalho, sobretudo nas vindimas, mas “todos têm medo de suspender o Rendimento Mínimo porque [dizem-lhe], depois, é muito complicado voltarem a receber”.

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O trabalho nas vinhas do Douro é duro, mais não seja porque os trabalhadores têm de levantar-se cedo e enfrentam muito calor nas enconstas da região. Tiago Lopes

Trabalho clandestino foi o que encontrou Justina Teixeira na última vindima. Licenciada em Biologia, gere desde 2016 a Soluções d’Eleição, empresa da Régua que presta serviços agrícolas no Douro. À margem do colóquio da ProDouro, explicou que já viu, “em Mesão Frio, por volta das seis da manhã, cinco ou seis pessoas a saírem de uma carrinha frigorífica, que parou na beira da estrada”. “Era claramente mercado negro”, diz. E, isso, continua, já para não falar nos que se “organizam em carros particulares para as vindimas sem contrato e sem seguro”.

“Há pessoas que recebem subsídios, mas têm medo de perder aquele rendimento e, então, arriscam trabalhar sem contratos (...) Como é tudo por baixo da mesa, cobram-se mais barato, fazendo-nos concorrência desleal, que é muito difícil de combater”, lamenta a empresária.

Quando tomou conta do negócio, “os trabalhadores estavam inscritos na Segurança Social, mas não havia contratos escritos”. Justina quis as condições de trabalho declaradas, mas as pessoas, como tinham “dificuldade em ler e perceber o que estava nos papéis, tinham medo de assinar, desconfiavam e questionavam o porquê da obrigatoriedade de assinarem os contratos”. Teve casos em que “as pessoas levaram os contratos para casa e nunca devolveram”. “Outras assinam contrato, mas, entretanto, não aparecem e percebemos que estão a trabalhar noutras empresas.”

Quando os trabalhadores não comparecem, a legislação limita-se “a registar o abandono do trabalho”. Dos “custos com consultas médicas e seguros” as empresas não são ressarcidas. A Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) é que não perdoa fugas à lei. “Estão sempre em cima de nós por causa das fichas médicas”, diz, lamentando que os inspectores “estejam mais preocupados em multar quando uma carrinha só tem três extintores em vez de cinco, por exemplo”.

“Não podemos remunerar abaixo do custo”

“Não há soluções milagrosas” para o problema da falta de mão-de-obra no Douro, assumiu, na última sexta-feira, Rui Soares. O que há é “um conjunto de soluções que podem ajudar a resolver o problema”. Em Sabrosa, antes do arranque do colóquio da ProDouro, o seu presidente revelou ao Terroir que a associação está a trabalhar na criação e aplicação de um modelo de cálculo do custo de produção das uvas semelhante ao que foi estudado por Miguel Ángel Moreno, da Associação Agrária de Jovens Agricultores de Castela e Leão (ASAJA), um dos intervenientes no evento de sexta-feira, para a região espanhola da Rueda (ler entrevista).

Foi “um objectivo, estipulado ainda antes da pandemia”: utilizar ferramentas para calcular o custo de produção desta região, conta Rui Soares. “É certo que, numa região de viticultura de montanha, os custos de produção são altíssimos. O problema é saber quanto é que isso representa e de que valores estamos a falar. É que, quando vamos ao mercado da uva, encontramos valores tão díspares que nos fazem pensar se estamos a falar de valores justos e que remuneram devidamente o viticultor.”

A “oscilação é muito grande”, sublinha. “No mercado do vinho do Porto, que é mais regulado e em que os preços são mais estáveis, estamos a falar de 1,20 euros, 1,30 euros o quilo da uva. O grande problema é o mercado da uva para vinho DOC Douro, onde o intervalo de preços é muito grande e as diferenças muito díspares.” Aí, diz, a remuneração anda “entre 50 cêntimos o quilo e 1 euro o quilo”. Ou seja, há “um intervalo brutal”.

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O presidente da ProDouro, Rui Soares, defende que o negócio do vinho na região “tem de ser pensado e repensado”, para que seja mais justo, para todos. No colóquio que a associação promoveu em Sabrosa, estiveram também (da esquerda para a direita) a presidente da autarquia local, Helena Lapa, a directora regional de Agricultura e Pescas do Norte, Carla Alves, e Francisco Tovar, da Fladgate Partnership. Anna Costa

“Se o produtor tem determinado custo de produção, não podemos pagar a produção abaixo desse custo. Porque é ilegal, desde logo. E é imoral. Não podemos remunerar ninguém abaixo do custo”, defende o presidente da ProDouro, que defende que o “negócio tem de ser pensado e repensado”, para que seja mais justo, para todos. E, para Rui Soares, a remuneração das uvas abaixo do preço de produção “é um dos grandes responsáveis” pelo afastamento dos locais da viticultura e do trabalho nas quintas durienses.

“Claro que o êxodo das populações, o facto de muita gente ter saído da região e agora estar nos grandes centros tem várias causas, mas se o seu trabalho fosse devidamente remunerado e atractivo do ponto de vista financeiro, as pessoas já não sairiam com a mesma facilidade. Poderiam sair por opções profissionais, por a carreira delas passar por outras actividades, até porque a região está muito focada neste negócio da vinha e do vinho, mas a injusta remuneração de quem trabalha a terra afasta muitas pessoas”, entende Rui Soares.

“Numa região destas, difícil, com custos de produção altos, de agricultura de montanha e não agricultura de planície, de agricultura de encosta, há custos acrescidos, há dificuldade e penosidade do trabalho. Não estamos a falar de um trabalho fácil”. E, sem incentivos, as pessoas fogem, sentencia o presidente da ProDouro.

Ouvido pelo Terroir, o presidente da Associação das Empresas de Vinho do Porto (AEVP), António Marquez Filipe, estima que a necessidade da região “para a vindima é de 8000 a 10 mil pessoas, a acrescer a cerca de 10 mil necessárias para os restantes trabalhos agrícolas anuais”. Num estudo que a AEVP apresentou em Setembro ao Ministério da Agricultura, na pessoa do secretário de Estado, Rui Martinho, e a que o Terroir teve acesso, a associação faz o diagnóstico e apresenta “propostas minimizadoras” para mitigar o déficit de mão-de-obra na viticultura duriense.

O também director executivo da Symington explica que no final do Verão, início do Outono, o Douro “necessita da disponibilidade de cerca de 20 mil pessoas” para uma “vindima de duração média entre 25 e 30 dias”. Número que aumenta quanto mais rápida tiver de ser a colheita, o que pode acontecer “em consequência de fenómenos climáticos”.

O presidente da AEVP não esteve no colóquio de Sabrosa, mas também vê a falta de mão-de-obra como um “problema muitíssimo preocupante”. A associação elencou as causas da escassez de trabalhadores no Douro e já as fez chegar ao Governo: há um “persistente decréscimo populacional”, há “falta de atractividade” das regiões do Interior de Portugal, envelhecimento da mão-de-obra e “48 por cento dos trabalhadores da região têm mais de 50 anos”.

Segundo António Marquez Filipe, este diagnóstico também foi apresentado ao presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, António Cunha, e está agendada uma reunião com a Direcção Regional da Agricultura Norte e com a Comunidade Intermunicipal do Douro. Até ao momento, lamenta, a AEVP não tem uma única “resposta expressa das instituições contactadas”.

Não falta só mão-de-obra, estão a deixar o Douro trabalhadores especializados, alertou António Magalhães. O director de viticultura da Fladgate Partnership (Taylor's, Fonseca, Croft e Krohn), que também pertence aos órgãos da ProDouro, diz que é preciso “reconhecer a especialização e a penosidade do trabalho manual” nas vinhas durienses, como a poda, a despampa e a enxertia no lugar. “Cada vez se poda pior” e a enxertia no lugar “está ameaçada” no Douro, lamenta o experiente engenheiro agrónomo. A região “está a perder os seus trabalhadores especializados” e é preciso ter “muito cuidado na protecção dessas pessoas”, avisa.

Como é que se dá a volta a tudo isto? Se o problema começa no valor das uvas, é possível fixar um preço mínimo por quilo? “Não é possível”, afiança Rui Soares. “Na Rueda vão lá, mas é por um convénio entre cavalheiros, nunca por imposição”, explica o presidente da ProDouro, que lembra que, com a adesão de Portugal à União Europeia, “a fixação de preços é ilegal”. Antes de 1985, a fixação de preços era feita através da Casa do Douro: quando saía o comunicado de vindima, no mês de Agosto, “estipulava-se o quantitativo de benefício” – quantidade de mosto que cada produtor pode transformar em vinho do Porto – “e o preço a pagar por cada pipa”.

O que propõe o sector?

Em relação à justa remuneração, Rui Soares só vê uma saída: “estabelecer uma espécie de convénio”, “um acordo entre profissões, entre quem produz e quem comercializa, no sentido de estipular o preço mínimo, o justo valor”. E quem pode definir esse justo valor, a seu ver, é “o Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP), órgão onde estão representados a produção e o comércio e que tem “um árbitro, que é o presidente do IVDP”. “Esse é o caminho. O objectivo é trabalhar nesse sentido”, acredita o presidente da ProDouro.

Questionado sobre o “selo” de sustentabilidade Trust and Respect, assente nas vertentes económica, social e ambiental e apresentado no início deste ano à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro por Olga Martins, CEO da Lavradores de Feitoria, Rui Soares explica que essa é “uma iniciativa da responsabilidade” daquela empresa. Reconhece, contudo, que embora esteja “pensada e estruturada” esbarrou na “falta de informações das empresas relativamente aos custos de produção” das uvas no Douro.

Da parte da ProDouro, que integra o Conselho Interprofissional do IVDP, continua o responsável, a associação está a ir ao encontro daquilo que o instituto pretenderá fazer: criar um selo de sustentabilidade ao nível da região. “A nós, ProDouro, isso parece-nos muito bem, porque estamos a trabalhar para a região e não individualmente (...) Vai ao encontro do convénio que defendemos.” Mas acrescenta: “tudo o que seja para o estabelecimento de um preço justo para cobrir os preços de produção e remunerar os agricultores de uma forma correcta e sustentável, estamos disponíveis”.

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O presidente do IVDP, Gilberto Igrejas, foi um dos intervenientes no colóquio da ProDouro sobre mão-de-obra. E deixou alguns reptos ao sector. Anna Costa

O presidente do IVDP foi precisamente um dos oradores no colóquio da ProDouro, onde defendeu que o caminho do vinho duriense tem de ser o da “elevada qualidade, mas, também, de preços mais elevados”. Gilberto Igrejas lembrou que no actual Conselho Interprofissional “estão representadas quatro associações, duas do lado da produção e duas do lado do comércio” e que o momento não podia ser mais “oportuno para levar a cabo todas as transformações políticas que o sector vem exigindo há muito tempo”. Falou numa responsabilidade “enorme” por parte daquele órgão. “Não pode haver desculpas para que, daqui a dois anos, as grandes medidas políticas que enfermam e prejudicam a Região Demarcada do Douro não tenham sido tomadas”, afirmou.

“Alterar o regime do rendimento por hectare” foi um dos exemplos que deixou. “É necessário e vai ser urgente”, garantiu o presidente do IVDP. Outro foi a questão do benefício, com Gilberto Igrejas a perguntar à plateia: “Faz sentido discutir novamente o benefício? Não faz sentido? Ou [discutir] se vamos ter um benefício único ou um benefício separado para o Porto e para o Douro?”. “Uma questão crucial”, admitiu o presidente do IVDP, falando de “um dossiê” entregue ao instituto e que Igrejas promete “revisitar”. Não falou, contudo, do novo referencial.

O Terroir havia prometido colocar algumas questões ao presidente do IVDP no intervalo do colóquio, mas o responsável deixou o auditório de Sabrosa ainda antes da pausa para café.

Outra proposta apresentada na sexta-feira pela ProDouro é que as empresas privadas possam processar aos trabalhadores, até 20 de Dezembro, um apoio salarial de reposição de rendimento, até ao valor de um salário mensal, nas mesmas condições fiscais dos apoios excepcionais anunciados pelo Governo, isentando o apoio de 125 euros e o complemento das pensões de retenção na fonte, de subida de escalão em sede de IRS e de contribuição para Segurança Social.

Já a AEVP defendeu a suspensão dos benefícios sociais (abono de família, rendimento mínimo e outras prestações) com a celebração de contratos de curta duração de carácter agrícola, porque entende o seu presidente, António Marquez Filipe, que o trabalho temporário “não deveria comprometer a atribuição dos benefícios sociais”. E ainda que, “no caso das prestações sociais de sobrevivência e abono de família, deve poder haver acumulação dos rendimentos auferidos”.

O Terroir questionou, a 24 de Outubro, por email, o Ministério da Agricultura sobre as propostas das duas associações, mas, apesar da nossa insistência, não obteve respostas.

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