E quando a vacina não dá lucro?

Com as vacinas da covid-19, muito se discutiu sobre a quebra das patentes. Esta é uma discussão que ficará sempre pela metade se considerarmos uma indústria farmacêutica eminentemente privada. Longe de querer ser um discurso contra a indústria, pode inclusivamente ser-lhe benéfico, se assumir com franqueza que é aos Estados, e não às empresas, que cabe assegurar um direito à saúde que é também o direito ao medicamento.

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Ricardo Lopes

Há alguns dias, numa apresentação, mostrei duas imagens sobre o futuro da luta contra a cólera, as duas tiradas no mesmo lugar: Beira, Moçambique, após a devastação do ciclone Idai em 2019. A primeira imagem, uma aldeia alagada, ilustrava como o aquecimento global tornou as catástrofes naturais muito mais frequentes. Só as cheias aumentaram 134% em duas décadas. Tragédias como as da Beira ou a recente no Paquistão - ambas com importantes surtos de cólera - começam a fazer parte da normalidade. A segunda imagem, vislumbre de esperança, mostrava a campanha de vacinação oral contra a cólera nas comunidades afectadas pelo ciclone. Desde que a vacina assumiu a sua formulação oral, tem-se afirmado um instrumento essencial na luta contra esta doença em contextos de crise humanitária, permitindo salvar milhares de vidas.

Na semana passada, a Shantha Biotechnics, uma das duas únicas farmacêuticas que produziam vacinas orais contra a cólera, anunciou a descontinuação da sua produção. Apesar do impacto enorme na população, a vacina não apresenta interesse comercial que justifique a sua continuidade. A OMS alertara, em Setembro, que a actual quantidade de vacinas era insuficiente para o brutal aumento de casos registados. Só este ano, 29 países registaram surtos de cólera e a letalidade triplicou face à média dos últimos cinco anos. Com esta notícia, este já escasso stock registará uma enorme quebra, ficando dependente de uma única fonte e ameaçando as estratégias de contenção e erradicação da doença. A OMS viu-se entretanto obrigada a reduzir a pauta terapêutica de duas para uma dose, correndo o risco de comprometer a sua eficácia. Das duas imagens - a ameaça e a esperança - restará apenas a primeira.​

A fragilidade de algumas cadeias de produção, especialmente ligadas a fármacos antigos sem “interesse comercial”, tem condicionado escassez de medicação usada para fins tão diversos como a oncologia, a cardiologia ou as doenças auto-imunes. Em 2020, a Autoridade de Concorrência britânica teve mesmo de intervir para que o lítio, fármaco importante para a perturbação bipolar, não fosse descontinuado. No entanto, esta é uma discussão em geral invisibilizada, como habitualmente são também os doentes afectados por estas questões.

E se no contexto ocidental é tido já como um problema de saúde pública, em países de baixo e médio rendimento assume outra dimensão. Além de muito mais dependentes de cadeias de importação, estes vêem-se incapazes de pagar avultadas quantias pelo tratamento de doenças que não afectam o Norte Global. Em 2012, milhões de doentes foram afectados pela quebra total na produção do benznidazole, fármaco de primeira linha para o tratamento da doença de Chagas, devido a um problema no laboratório brasileiro, estatal, à data o único produtor. Mesmo para doenças de grande incidência como a malária, a tão antecipada vacina já vem com o pré-aviso de escassez, dada a incapacidade de garantir a rentabilidade da produção.

Evitando moralismos (legítimos) sobre o papel da indústria farmacêutica, privada e cuja sobrevivência sempre dependerá do lucro, cabe aos Estados e à comunidade internacional assegurar que esta questão, plenamente prevenível, não continue a constituir um problema de saúde pública. Uma via é o fortalecimento da regulamentação. Este mês, em Espanha, aprovou-se uma lista de 508 medicamentos estratégicos, ou imprescindíveis, acompanhada de medidas que visam evitar quebras de stock.

A União Europeia publicou também, em 2020, uma estratégia farmacêutica para mitigar este problema. Pode ainda ir-se mais além, através da acção directa e movimentação social. Nos Estados Unidos, a associação Remedy Alliance conseguiu recentemente baixar o preço e aumentar a distribuição da naloxona. Em 2021, a escassez deste fármaco que reverte overdoses de opióides, causou entre 12.000 e 18.000 mortes. Por fim, em determinados contextos, não se deve descartar a estatização de parte da indústria farmacêutica. Países como o Brasil, Indonésia ou Cuba detêm importantes sectores farmacêuticos estatais, hoje não só importantes para a sua independência (relativa) a este nível como para a distribuição em outros países a Sul.

Com as vacinas da covid-19, muito se discutiu sobre a quebra das patentes. Esta é uma discussão que ficará sempre pela metade se considerarmos uma indústria farmacêutica eminentemente privada. Longe de querer ser um discurso contra a indústria, pode inclusivamente ser-lhe benéfico, se assumir com franqueza que é aos Estados, e não às empresas, que cabe assegurar um direito à saúde que é também o direito ao medicamento. Só um esforço concertado entre o scetor público e o privado, e um reconhecimento dessas necessidades à escala global, poderá garantir que, num futuro que já parece ameaçador, tenhamos ao menos os instrumentos para o tornar mais justo.

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