A polícia da moralidade também está entre nós

Numa entrevista de emprego, em Portugal, uma mulher usa um decote no qual se pode ver um minúsculo piercing. Infelizmente, é impiedosamente prejudicada pela “polícia da moralidade” que advém dos nossos estereótipos, das nossas vivências e preconceitos. A sua inteligência, a provável capacidade e a adequação para o lugar de nada lhe valeram.

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Annie Spratt/Unsplash

O termo “polícia da moralidade” tornou-se mais presente nestes últimos dias após a morte de Mahsa Amini, uma jovem iraniana de 22 anos que supostamente deixou à vista alguns fios de cabelo sob o hijab, o véu que tradicionalmente a maioria das mulheres muçulmanas envergam. Este acto, simples e aparentemente inofensivo, levou à sua detenção, mais tarde ao coma e ao seu falecimento. Na sequência deste episódio milhares de iranianos saíram à rua com o objectivo de reivindicar uma maior liberdade e o fim do que os activistas apelidam de “ditadura religiosa”, resultando em dezenas de mortes e feridos.

Bem longe do Irão e de uma forma mais civilizada, a “polícia da moralidade” também vive entre nós. Silenciosamente, dissimulada e aceite, mesmo quando não damos conta. Com o devido distanciamento, há realidades que se tocam quando é de reprovação mesquinha que falamos.

Numa entrevista de emprego, em Portugal, uma mulher usa um decote no qual se pode ver um minúsculo piercing. Para alguns é apenas um enfeite, para outros, um atrevimento. O que significa para ela? Não é o que verdadeiramente interessa? Assume-o de uma forma elegante e livre, num corpo que é seu e numa vontade que lhe pertence.

Infelizmente, é impiedosamente prejudicada pela “polícia da moralidade” que advém dos nossos estereótipos, das nossas vivências e preconceitos. A sua inteligência, a provável capacidade e a adequação para o lugar de nada lhe valeram. Ficou reduzida a um adereço lascivo que não encaixa no expectável. Na balança da tacanhez, pesou mais uma mulher adequadamente vestida do que aquela que se expressa, que assume as suas escolhas e que o faz de forma visível.

A “polícia da moralidade”, que regula, castra e sanciona, actua também de forma concertada e impositiva: termino o dia num supermercado espaçoso, cuidador do planeta, proclamador dos princípios da sustentabilidade e outros que brilham nas suas insígnias.

Reparo que a colaboradora da caixa tem um penso em cada orelha e outro no interior do pulso. Nada de estranho, não fosse o facto de vários colaboradores exibirem o mesmo noutras partes do corpo. Ainda coloquei a hipótese de se terem ferido nos últimos dias ou participado em algum ritual satânico em conjunto, mas perante a minha impertinente questão, disse-me, entre dentes, que são obrigados a cobrir os piercings e as tatuagens. Por uma questão relacionada com a segurança alimentar? Encolheu os ombros, enquanto colocava nervosamente as compras no meu saco. Mostrei-lhe o meu desagrado, mas percebi que era um assunto que a constrangia e por isso não insisti. Mas para além das frutas e dos legumes levei também uma raiva desconfortável para casa.

A necessidade de nos manifestarmos através do nosso exterior de forma livre e espontânea, sem medo de represálias, morais ou outras é um dos requisitos do mundo moderno, das sociedades evoluídas e inclusivas. Se não é, já é tempo de ser.

Volto a Mahsa. Não tinha um decote, acredito que nenhum piercing ou tatuagem, apenas uma madeixa de cabelo que lhe serpenteava o rosto. Não sobreviveu ao veneno dos militantes pela moralidade, tornou-se mártir e inspirou uma revolta nunca vista, talvez alguma mudança. Preferia que tivesse sido apenas um passeio feliz e livre por Teerão.

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