Faz de conta que a mãe não morreu

A dor sufoca-nos como uma mão o tempo todo sobre o pescoço. Sei bem como é, meu irmão. A palavra tristeza é estreita.

Foto
Unsplash

A palavra tristeza é estreita para classificar o vazio permanente e definitivo daquele que fica pendurado na ausência de alguém insubstituível. O incrédulo limita-se a verbalizar: “Adeus.” Um primeiro adeus, dos muitos que irá repetir na cabeça ao longo dos anos, sabendo, porém, que nunca será definitivo. O crente acena abatido, mas conservando um optimismo irrepreensível na despedida temporária: “A Deus.” Deixando o precioso ser entregue às mãos redentoras do Outro.

Nunca soubemos das mortes, dessas que se concretizam a temperaturas frias, transformando a mais calorosa das pessoas num objecto inanimado, até ao dia em que a perdemos. Olho para ti, expectante, quase a querer apostar o mindinho em como um dia vai notar-se a tua perda, a tua dor, e nada. Passas o dia fechado no hospital, a ver e lidar com os problemas dos outros, com as perdas dos outros. Dos teus problemas não queres saber, chutas para canto aquilo que te mete medo. Consideras a vida um jogo da bola: mesmo que estejas a perder na primeira parte, talvez recuperes na segunda e venhas a ganhar, nunca se sabe.

É raro falar sobre o que aconteceu. Fazes de conta. “Faz de conta que a mãe foi de férias, eu fiquei a arrumar-lhe a casa, que é para ela quando voltar ficar contente. Se ela não voltar, eu vou ter com ela mais tarde. Todos vamos.” Dizes isto sem emoção ou pena ou perturbação, nada que se veja em ti que possa dizer que estás a sofrer. E eu sei que estás. Até porque não falas, nunca choraste, e só uma pessoa com um sofrimento atroz pode ficar árida como um deserto para sempre.

Talvez não fiques assim para sempre. Tenho esperança de que não. Os teus cabelos branquearam nos últimos meses, afundas-te em consultas, fazes turnos e turnos de seguida, tudo para adiares o momento de voltares para casa. Para essa casa vazia, sem a mãe, sem a voz e os cozinhados da mãe e tudo aquilo que era a mãe mesmo as coisas em que não tocava. Chegas a casa e ela ainda está presente e não está. Limpas a casa, como ela gostava, e trazes flores para pôr na jarra da sala, porque nunca faltaram flores ou limpeza nesta casa.

Eu não sou como tu. Mal consigo sair do quarto. Se não fosses tu a trazer-me comida, provavelmente já teria ido ter com ela. Um dia vamos falar sobre isto. Agora é cedo. A dor sufoca-nos como uma mão o tempo todo sobre o pescoço. Sei bem como é, meu irmão. A palavra tristeza é estreita.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários