Excerto do primeiro capítulo de Lições, de Ian McEwan

O novo romance do escritor britânico Ian McEwan, publicado mundialmente neste mês de Setembro, chega às livrarias portuguesas nesta terça-feira numa edição da Gradiva. Lições conta-nos a vida de Roland Baines, levando o leitor através de várias gerações e de convulsões históricas: da Crise de Suez à crise dos mísseis de Cuba, da queda do Muro de Berlim à actual pandemia.

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Ian McEwan ENRIC VIVES-RUBIO / PUBLICO

Era uma memória de insónia, não um sonho. Era outra vez a lição de piano — o chão com mosaicos alaranjados, uma janela alta, um piano vertical novo numa sala vazia, perto da enfermaria. Tinha onze anos e estava a tentar tocar o que outros talvez conhecessem como o primeiro prelúdio do Livro Um de O Cravo Bem Temperado de Bach, versão simplificada, mas ele não sabia nada disso. Não sabia se era famoso ou desconhecido. Não tinha quando nem onde. Não conseguia conceber que alguém se tivesse dado ao trabalho de escrever aquilo. A música, ali, era simples, uma coisa de escola, ou obscura, como um pinhal no Inverno, exclusivamente sua, o seu labirinto privado de profunda tristeza. Nunca o deixaria partir.

A professora estava sentada ao lado dele no banco comprido. Cara redonda, muito direita, perfumada, exigente. A sua beleza escondia‑se sob a sua postura. Nunca se mostrava zangada e nunca sorria. Alguns rapazes diziam que ela era louca, mas ele duvidava disso.

Enganou‑se no mesmo sítio onde sempre se enganava, e ela aproximou‑se mais dele para lhe mostrar. O seu braço era firme e quente contra o ombro dele, as suas mãos, as suas unhas pintadas estavam mesmo acima do colo dele. Sentiu um formigueiro terrível a desviar‑lhe a atenção.

— Ouve. É um som ondulante fácil.

Mas, enquanto ela tocava, ele não ouvia nenhum som ondulante fácil. O seu perfume dominava‑lhe os sentidos e ensurdecia‑o. Era um aroma arrebatador mas enjoativo, como um objecto duro, uma pedra lisa de um rio, a empurrar‑lhe os pensamentos. Três anos mais tarde, soube que era água de rosas.

— Tenta outra vez. — Disse‑o num tom ascendente de aviso. Ela tinha um sentido musical, ele não. Sabia que a cabeça dela estava noutro lugar e que a aborrecia com a sua insignificância: mais um rapaz moreno num colégio interno. Os dedos dele pressionavam as teclas sem melodia. Via na pauta o sítio onde se enganava antes de lá chegar, acontecia antes de acontecer, o erro vinha em direcção a ele, de braços estendidos como uma mãe, pronta para lhe pegar, sempre o mesmo erro a vir buscá‑lo sem a promessa de um beijo. E assim acontecia. O seu polegar tinha vida própria.

Juntos, ouviram as notas erradas a desvanecerem‑se no silêncio sibilante.

— Desculpe — murmurou para si próprio.

O desagrado dela veio sob a forma de uma exalação rápida pelas narinas, uma fungadela invertida que ele já tinha ouvido antes. Os dedos dela encontraram a parte de dentro da perna dele, mesmo junto à bainha dos calções cinzentos, e beliscaram‑na com força. Nessa noite, iria ter uma pequena marca azulada. A mão dela estava fria quando a deslizou por baixo dos calções até ao sítio onde o elástico das cuecas lhe tocava na pele. Ele saiu atabalhoadamente do banco e pôs‑se de pé, corado.

— Senta‑te. Vais começar outra vez!

A sua severidade apagou o que tinha acabado de acontecer. Tinha passado, e ele começou a duvidar da sua memória. Hesitou perante mais um daqueles encontros ocultos com os métodos dos adultos. Nunca nos diziam aquilo que sabiam. Escondiam de nós os limites da nossa ignorância. O que acontecera, fosse o que fosse, devia ser culpa dele, e não estava na sua natureza desobedecer. Por isso, sentou‑se, levantou a cabeça para a coluna soturna das claves de sol algures penduradas na pauta e começou outra vez, ainda mais hesitante do que antes. Não poderia haver ondulação, não nesta floresta. Demasiado depressa, aproximava‑se desse mesmo lugar terrível. O desastre era certo, e saber isso confirmava‑o, com o seu polegar idiota a ir para baixo, quando devia ter‑se mantido imóvel. Parou. A dissonância que ficou a pairar no ar parecia o seu nome dito em voz alta. Ela pegou‑lhe no queixo entre o nó do dedo e o polegar e voltou a cara dele para ela. Até a sua respiração era perfumada. Sem afastar os olhos dos dele, pegou na régua de trinta centímetros que estava sobre a tampa do piano. Ele não permitiria que ela lhe batesse, mas, quando deslizou do banco, não viu o que estava para acontecer. Ela acertou‑lhe no joelho, com o rebordo da régua e não com a parte direita, doeu‑lhe. Ele deu um passo atrás.

— Vais fazer o que eu mando e sentar‑te.

Tinha a perna a arder, mas não ia pôr lá a mão, ainda não. Olhou‑a uma última vez, vendo a sua beleza, a sua blusa justa de colarinho alto e com botões de pérolas, os ténues vincos diagonais no tecido formados pelos seus seios sob o seu olhar correcto e firme.

Fugiu dela, por uma colunata de meses até ter treze anos e a noite já ir adiantada. Durante meses, ela estivera presente nos seus sonhos antes de adormecer. Mas, desta vez, era diferente, experimentava uma sensação selvagem, o frio que sentia no estômago era aquilo a que, achava ele, as pessoas chamavam êxtase. Tudo era novo, bom ou mau, e era tudo dele. Nunca nada tinha sido tão empolgante como passar o ponto de não retorno. Demasiado tarde, impossível voltar atrás, alguém se importava com isso? Surpreendido, veio‑se na mão pela primeira vez. Quando recuperou, sentou‑se às escuras, saiu da cama, foi à casa de banho do dormitório, «o pântano», para examinar o pálido glóbulo na palma da mão, a palma da mão de uma criança.

Ali, as memórias esvaíam‑se em sonhos. Foi‑se aproximando, mais e mais, através de um universo cintilante, da vista do cume de uma montanha que se elevava acima de um oceano distante, semelhante à que o gordo Cortés viu num poema que toda a turma teve de escrever vinte e cinco vezes como castigo. Um mar de criaturas que se contorciam, mais pequenas do que girinos, milhões e milhões, apinhadas até à curva do horizonte. Aproximou‑se ainda mais até que encontrou e seguiu um certo indivíduo a nadar através da multidão na sua viagem, sacudindo‑se com os irmãos em túneis suaves cor‑de‑rosa, ultrapassando os outros à medida que iam caindo, exaustos. Finalmente, chegou sozinho à frente de um disco, magnífico como um sol, que rodava lentamente no sentido dos ponteiros do relógio, calmo e cheio de sabedoria, esperando com indiferença. Se não fosse ele, seria outra pessoa. Ao entrar por umas cortinas grossas vermelho‑sangue, ouviu vindo de longe um uivo, depois uma explosão de sol no rosto de um bebé a chorar.

Era um adulto, um poeta, como gostava de pensar, de ressaca e com uma barba de cinco dias, a erguer‑se do remanso de um sono recente, agora a ir aos tropeções até ao quarto onde o bebé chorava, levantando‑o do berço e chegando‑o a si.

A seguir, estava no andar de baixo, com a criança a dormir sobre o seu peito, tapada com um cobertor. Uma cadeira de baloiço e junto dela, em cima de uma mesa baixa, um livro que tinha comprado sobre os problemas do mundo e que sabia que nunca leria. Tinha os seus próprios problemas. Estava de frente para umas janelas de guilhotina, a olhar para um estreito jardim londrino por entre uma madrugada de neblina e chuva e para uma única macieira despida. À sua esquerda, um carrinho de mão verde virado ao contrário, que não andava desde um qualquer dia esquecido no Verão. Mais perto, havia uma mesa redonda de metal que sempre tencionara pintar. Uma Primavera fria e tardia escondera a morte da árvore que este ano não teria folhas. Durante uma seca quente de três semanas que começara em Julho podia tê‑la salvado, mesmo com a proibição das mangueiras. Mas estivera demasiado ocupado para carregar baldes de água em toda a extensão do jardim.

Os seus olhos começavam a fechar‑se, e estava a inclinar‑se para trás, mais uma vez a recordar, não a dormir. Ali estava o prelúdio como devia ser tocado.

Já tinha passado muito tempo desde que se encontrava naquele sítio, outra vez com onze anos, a caminhar com outros trinta em direcção a uma velha caserna militar. Eram demasiado novos para saberem o quão eram infelizes e tinham demasiado frio para falarem. A relutância colectiva fazia‑os andar a compasso como um corpo de ballet, enquanto desciam em silêncio uma encosta íngreme de ervas para formarem fila lá fora na neblina e esperarem obedientemente que a aula começasse.

Lá dentro, mesmo no centro, encontrava‑se uma braseira, e, depois de se aquecerem, ficaram turbulentos. Era possível ali e não em qualquer outro lado, porque o professor de Latim, um escocês baixo e afável, não conseguia controlar a turma. No quadro, pela mão do professor: Exspectata dies aderat. Por baixo, a letra desajeitada de um rapaz: Chegou o dia há muito esperado. Naquela mesma caserna, como lhes tinham ensinado, homens em tempos mais graves tinham‑se preparado para a guerra no mar, aprendendo a matemática da colocação de minas. Era essa a preparação deles. Enquanto agora, um rapaz corpulento, um famoso rufia, caminhava empertigado até à frente para se dobrar, com um olhar lascivo, oferecendo o seu traseiro satírico para que o afável escocês lhe batesse inutilmente com uma sapatilha. Houve vivas ao rufia, porque mais nenhum se atreveria a tanto.

Ao mesmo tempo que o barulho e o caos aumentavam, e uma coisa branca era atirada entre as carteiras, ele lembrou‑se de que era segunda‑feira e o dia há muito esperado e temido chegara — outra vez. No pulso tinha o relógio grande que o pai lhe dera. Não o percas. Dali a trinta e dois minutos, começaria a aula de piano. Tentou não pensar na professora, porque não tinha treinado. A floresta estava demasiado escura e assustadora para chegar a um sítio onde o seu polegar baixava cegamente. Se pensasse na mãe, ficaria frágil. Ela estava longe e não podia ajudá‑lo e, por isso, afastou‑a. Ninguém podia impedir a segunda‑feira de chegar. A nódoa negra da semana anterior estava a desaparecer, e o que era isso para o lembrar do perfume da professora de piano? Não era o mesmo que sentir o seu cheiro. Era mais uma imagem sem cor, ou um lugar, ou a sensação de um lugar, ou qualquer coisa entre os dois. Além do medo havia outro elemento, a excitação, que ele tinha também de afastar.

Para Roland Baines, o homem que não podia dormir e que estava sentado na cadeira de baloiço, o despertar da cidade era apenas um som apressado distante, que aumentava a cada minuto que passava. A hora de ponta. Expulsas dos seus sonhos, das suas camas, as pessoas moviam‑se pelas ruas como o vento. Ali, ele não tinha nada a fazer a não ser servir de cama ao filho. Sentia o coração do bebé a bater contra o seu peito, pouco menos do dobro das suas pulsações. De vez em quando, a pulsação de ambos coincidia, mas um dia seriam sempre díspares. Não voltariam a estar tão próximos um do outro. Ele conheceria o filho menos bem, e depois ainda menos. Outros conheceriam Lawrence melhor do que ele, saberiam onde ele se encontrava, o que estava a fazer e a dizer, aproximando‑se mais deste amigo e depois desta amante. Às vezes choraria, sozinho. Com o pai, seriam visitas ocasionais, um abraço sincero, contar como ia o trabalho, a família, falar um pouco de política, e depois adeus. Até então, ele sabia tudo sobre ele, onde estava a cada minuto e cada lugar. Era a cama do bebé e o seu deus. O longo desapego, quer ele gostasse ou não, podia ser a essência da paternidade e, naquele momento, era impossível de conceber.

Tinham passado muitos anos desde que ele abrira mão do rapaz de onze anos com a marca oval secreta na parte de dentro da perna. Nessa noite, tinha‑a examinado depois de as luzes se apagarem, baixando as calças do pijama no «pântano» e dobrando‑se para ver mais de perto. Estava ali a marca do dedo e do polegar dela, a sua assinatura, um registo escrito do momento que o tornava verdadeiro. Uma espécie de fotografia. Não lhe doeu quando passou o dedo nas bordas onde a pele pálida exibia um tom verde‑azulado. Carregou com força, mesmo no meio, onde ficara quase negro. Não doeu.

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