Apertar o cinto

Queria ser polícia. Proteger as pessoas, ser procurada em caso de perigo. Usar um cinto com uma pistola que impusesse respeito a qualquer pessoa. Um cinto que não se usasse demasiado apertado nem largo, tinha de estar à medida.

Foto
Pixabay

A mãe ensinou-lhe a apertar o cinto. O de couro, que prendia as calças de criança compradas quase sempre um ou dois números acima para durarem mais: “Ao menos que aguentem duas estações, que o sacana do dinheiro não estica.”

O cinto das calças era uma metáfora bastante literal para o modo como se vivia naquela casa: poupar, encolher e esticar se preciso fosse. De um ordenado pouco acima do salário mínimo nacional tinham de viver mãe, pai e filha, numa idade em que esta última requeria despesa com a vaidade, como qualquer adolescente. Roupas de marca cara nunca as teve, aprendeu que o que conta é a personalidade e amanhar na máquina de costura os trapos comprados da feira. Toda a gente reconhecia as mãos talentosas que os pais ou Deus lhe deram.

Além da costura, também se ajeitava na cozinha e no desenho. Embora na família ninguém lhe valorizasse as pinturas, nas aulas de Educação Visual sentia-se enaltecida. Sabia que não poderia seguir com os estudos assim que terminasse o ensino obrigatório. Não que se importasse; apesar de ser boa aluna não lhe interessavam as coisas dos livros.

Queria ser polícia. Gostava da autoridade e da farda, verdade seja dita. Nem mesmo as gargalhadas e os ataques dos pais a demoviam. !São todos uns corruptos, uns aldrabões, porque queres tu ser polícia? Olha que ganhas mal e tens de pagar a tua própria farda.” Advertiam os pais, embora a mãe também visse proveito em ter na família uma filha na polícia. “Se houver algum azar entre os nossos, estás lá dentro e dás um jeitinho pela família.” O pai também lhe dizia que ser polícia não era coisa para uma rapariga. “Num meio de homens, gozam contigo ou ainda viras machona para lidares com essa escória.”

Nunca respondeu aos comentários dos pais. Queria ser polícia. Proteger as pessoas, ser procurada em caso de perigo. Usar um cinto com uma pistola que impusesse respeito a qualquer pessoa. Um cinto que não se usasse demasiado apertado nem largo, tinha de estar à medida. Quando a empurraram para dentro da cela, perdeu por instantes a noção do sítio onde se encontrava. Sem dormir quase há duas noites, as paredes cor de cimento pareciam turvas. Alguém tossia numa cela próxima. Pensou que bastava uma nódoa na farda da polícia, uma rodela de molho de carne, por exemplo, para se perder autoridade.

Sugerir correcção
Comentar