Um serão atribulado em Ribeira Seca

Distraída pela conversa animada e com a pequena Lua ao colo não me apercebi de que era preciso segurá-la com força. Saltou-me do colo num salto de lince (o cão de fila ainda tentou abocanhá-la num movimento mas sem sucesso) e desapareceu no espaço escuro do terreno fechado que circundava toda a casa.

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Quando os conheci percebi logo que se tratava de boa gente. O riso fácil, os olhos vivos, as palavras prontas a disparar com franqueza da boca, como só a gente simples sabe manusear bem os afectos e a língua. De vinho de outras terras na mão, um cálice de Porto, sentados no exterior da moradia em Ribeira Seca, ficámos ali a partilhar histórias com o à-vontade de quem se conhece, mesmo que só nos tivéssemos visto pela primeira vez há um par de horas.

O cão de fila, ainda um cachorro inquieto, ia saracoteando entre os donos e as visitas, deixando saliva nos braços e pernas deixados à vista graças à noite típica de Verão. Entre uma e outra histórias engraçadas e outra trocadas com muita galhofa à mistura, o filho mais novo da proprietária da casa — um rapaz alto e atlético com feições finas, que parecia saído de um anúncio da Calvin Klein — foi buscar a Lua, uma gatinha bebé, adoptada à força porque alguém deixou de a querer e um dia atirou-a ao calhas para dentro do quintal. A Lua, uma gatinha cinzenta assustada, a andar de colo em colo das visitas sem perceber nada do que estava a acontecer.

Distraída pela conversa animada e com a pequena Lua ao colo não me apercebi de que era preciso segurá-la com força. Saltou-me do colo num salto de lince (o cão de fila ainda tentou abocanhá-la num movimento mas sem sucesso) e desapareceu no espaço escuro do terreno fechado que circundava toda a casa. O grupo perdeu o riso e, de lanternas do telefone em riste, começou à procura da bichana pelo breu do terreno. O cão farejava ansioso todo o espaço e tive esperança que desencantasse a Lua. Procurámos durante alguns minutos e nada, nem um miado mínimo. Descansámos um pouco as lanternas com a esperança de que a gatinha mais tarde ou mais cedo, por medo, fome ou sede, viesse ter connosco.

Não me recompunha enquanto não a visse regressar. Afinal tinha saído do meu colo, era inevitável sentir a culpa caso a Lua se perdesse. De repente, encostada à ombreira da porta que dava acesso ao exterior em que estávamos, a proprietária, uma mulher bonita, magra e ossuda, de olhos claros, ficou lívida. Branca como só a cal no Alentejo pode ser e balbuciou: “Vou desmaiar.” E começou a derreter a caminho do chão, não fosse a irmã mais nova, uma moça bonita na casa dos 40 e muitos, agarrá-la pelos braços. Felizmente tínhamos uma enfermeira no grupo que depois de a acomodar no chão de tijoleira — não tinha ânimo para erguer-se —, atirou-lhe com água fria para a cara, o que a fez despertar aos poucos e sorrir.

Começamos todos a rir, uns de nervos, outros porque tinha graça a sequência inusitada de acontecimentos, sobretudo a irmã gémea da mulher desmaiada, uma mulher de riso fácil sempre pronta para a paródia que não conseguir impedir-se de gargalhar. Mas a noite ainda não tinha terminado. A proprietária da casa, supostamente reposta do susto da perda do animal ou apenas de uma quebra de tensão devido ao excesso de nicotina inalada durante a conversa animada no exterior da casa, desanda de gatas até à retrete mais próxima e vomita durante uns momentos. A preocupação aumentou. Ficámos em silêncio um momento. E novamente a sua irmã gémea ria a bom rir.

Depois de vomitar, começou a pedir desculpa pelo trabalho que estava a dar, um hábito dos enfermos de se desculparem, como se tivessem escolha por o corpo não estar a acompanhar com saúde. Já acomodada no sofá e recuperando as cores saudáveis do rosto, depois de beber dois copos de água com açúcar e se verificar que tinha a tensão equilibrada, todos desataram a rir. Excepto eu, que ainda não tinha visto a gata fugitiva regressar a casa. Disseram-me depois que levou duas noites a dar sinal de vida. Foram dar com ela a miar às seis e pouco da manhã a miar em cima do muro. Depois de duas noites de chuva, sem comer nem beber, pobre Lua, enfim sã e salva.

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