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Ainda é de noite na Linha do Vouga, onde se viaja no tempo

André Gouveia encontrou “estações emparedadas”, “espaços vazios”. “É um comboio caro e lento. A série 1.000mm faz o retrato presente (e negro) da Linha do Vouga, convidando-nos a pensar sobre o seu futuro.

©André Gouveia
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©André Gouveia

O fotógrafo André Gouveia passou a infância junto à estação Espinho - Vouga, mesmo no centro da cidade de Espinho. “Apesar da presença constante do comboio na minha vida, nunca tinha, até há poucos anos, feito uma viagem naquela linha”, contou ao P3. Os sons, as paisagens da linha do Vouga, foram, no entanto, ganhando corpo no seu ideário infantil. “Imaginava as casinhas, os apeadeiros, os passageiros, os trabalhadores, a azáfama da linha, mesmo sem nunca ter experienciado”, conta o repórter de imagem de 32 anos. O pai dizia-lhe que tinha um comboio que era seu. “Chamava-lhe o Gouveiinha, em vez de Vouguinha”, recorda, com um sorriso estampado na voz. E assim nasceu uma ligação especial, pessoal, com a Linha do Vouga. “Transformou-se em algo onírico, utópico.”

Em 2004, a estação que ficava mesmo diante da sua porta foi relocalizada para a periferia da cidade e as imagens e sons que André fabricou fixaram-se na sua mente, deixando a semente para o regresso e para o confronto com a realidade na idade adulta. “Em 2015, fiz pela primeira vez uma viagem na Linha do Vouga.” E fotografou. “Optei, inicialmente, por uma abordagem documental clássica, mas cedo me apercebi que o que buscava era algo diferente.” Regressou em 2020, em plena pandemia, em busca de imagens que fizessem jus ao imaginário que conservava, mas “evocando um clima consistente de solidão, abandono”. Assim, a noite caiu e André deixou-se conduzir por ela.

Essa treva presente nas imagens não é casual; existe nelas um tom “inevitavelmente crítico”. A linha do Vouga, com 114 anos, já teve morte anunciada durante o governo da Troika e continua a lutar pela sua completude. Entre Oliveira de Azeméis e Sernada do Vouga não circulam comboios de passageiros desde 2009, apenas comboios de serviço à velocidade máxima de dez quilómetros por hora devido ao mau estado da linha. Ao longo desses trinta quilómetros de via, parte dos carris assenta directamente na terra porque as travessas de madeira estão podres. Quando chove, essa terra transforma-se em lama, contribuindo para a falta de segurança no trajecto.

Assim, a Linha do Vouga é explorada comercialmente apenas entre Espinho e Oliveira de Azeméis e entre Sernada do Vouga e Aveiro. “Existe uma inevitável referência à morte, à noite, ao negro, remetendo-nos [por oposição] a um passado grandioso da ferrovia”, pode ler-se na sinopse do projecto 1.000mm, cujo título remete para o facto ser esta ser a única linha de via estreita, ou bitola métrica, ainda em exploração em Portugal. No futuro, de acordo com o plano das Infraestruturas de Portugal (IP), no troço agora encerrado poderá viajar apenas uma composição de cada vez e a uma velocidade máxima de 30 quilómetros por hora — o que a CP contesta, já que pretende ter mais comboios em circulação na linha que será reabilitada.

Ao longo de 2020, e apesar dos constrangimentos no percurso, André Gouveia conheceu toda a extensão da linha — nem o troço encerrado que ligava antigamente Albergaria-a-Velha a Viseu, encerrado em 1972, escapou à mira do seu aparato fotográfico. De carro, André explorou a área envolvente de cada estação e apeadeiro, com especial enfoque nas Minas de volfrâmio de Regoufe e nas oficinas da EMEF. “São espaços importantes na história daquele troço”, reflecte. “A sua utilidade é o único motivo pelo qual ele ainda existe.”

Encontrou “estações emparedadas”, “espaços vazios”. “Há ausência de estruturas de apoio em torno da maioria das estações e apeadeiros”, avalia. “É um comboio caro e lento”, utilizado por pessoas idosas para deslocações pontuais e por jovens que se deslocam até aos seus locais de trabalho ou até às praias de Espinho ou Aveiro, conta.

“Quem viaja na Linha do Vouga viaja no tempo”, observa o fotojornalista freelancer. A linha, inaugurada pelo rei D. Manuel II em 1908, já existia quando se deu a queda da monarquia e a implantação da República, sobreviveu a duas guerras mundiais, à ascensão e queda do fascismo, às várias intervenções da Troika em Portugal.

“Existe um esforço de investimento na Linha do Vouga, presentemente, graças à atribuição de fundos europeus para o efeito, mas o que é certo é que ainda falta muito para haver uma situação normalizada.” Está previsto o investimento global de 34 milhões de euros para a recuperação dos 96 quilómetros que compõem a Linha do Vouga, a executar até 2025.

©André Gouveia
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©André Gouveia
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