Um sábado em Ceuta

A leitora Rita Neves alugou um carro em Tânger e conduziu até à cidade espanhola no Norte de África. E constatou que Ceuta está a mudar.

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Ceuta Rita Neves

Passei um sábado em Ceuta, acompanhada pelo Mohamed, realizador de cinema franco-marroquino.

Podia começar o meu relato pela primeira paragem na cidade, para um copo de vinho branco (Rioja, óptimo) no bar do parador de Ceuta. O parador tem o requinte habitual, um grande hall bem decorado, faz lembrar o bem-estar das férias em Espanha. Ou talvez começasse o relato pela passagem da fronteira terrestre, a pé, chegando de Marrocos. A fronteira reabriu há [pouco mais de] um mês, depois de mais de dois anos totalmente encerrada, primeiro devido à covid e sobretudo depois devido às relações tensas entre Marrocos e Espanha (e Argélia).

Mas prefiro recuar para começar este relato ao ponto em que estou a conduzir um carro alugado no aeroporto de Tânger e a auto-estrada me leva a Alcácer Ceguer. A paisagem faz lembrar Trás-os-Montes, nas cores, nos montes. A estrada continua e há cada vez mais montes, subidas mais íngremes, mais curvas, os montes passam a pedras, pedregulhos gigantes, no topo há nevoeiros frequentes, nas curvas as vistas sublimes, do mar, de um lado e do outro, da pequena praia da Alcácer Ceguer, do enorme porto industrial de Tanger Med, mais uma curva e a paisagem muda, de repente tudo é verde, reaparece por vezes o azul do mar, também falésias e enseadas, e finalmente Ceuta com as suas casas de cores claras.

Temos agora que atravessar a fronteira. O carro é alugado, vai ter que ser a pé. O Mohamed consegue negociar um lugar de estacionamento no parque dos funcionários, andamos menos. A fronteira sofreu transformações profundas nas modalidades alfandegárias, e também nas infra-estruturas de acesso aos diferentes pontos de passagem: controlo do passaporte, controlo da bagagem, controlo sanitário, lado marroquino e lado espanhol. Antes do fecho da fronteira, em 2020, Ceuta era um pólo importantíssimo da economia do Norte de Marrocos. Marroquinos de todo o género vinham de carro aproveitar as rebajas e comprar produtos que não se encontravam em Marrocos. A cidade era como um enorme mercado e centro comercial, que abastecia toda a região. E tudo isto num clima de frequente tensão, como me conta o Mohamed, que tinha começado um filme sobre as “mulheres mulas“ (femmes mulet), antes da pandemia. Mas agora há restrições nas importações.

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Ceuta rita neves

Depois do parador, atravessamos a Plaza de Africa, classicamente espanhola com palmeiras e outras árvores, em frente um edifício do Estado com as bandeiras de Espanha e da Ucrânia, logo na rua ao lado um almoço de tapas em bom ambiente, esplanada alegre sem sobressaltos, como às três da tarde de um sábado de calor em Espanha. Presunto pata negra e croquetas de bogavante, uma delícia.

Ceuta está irreconhecível, diz-me Mohamed. A palavra que vem é douceur. Não há tensões, não há multidões a fazer compras, muitas lojas fecharam. Mas a cidade não está morta, está a renascer de outra forma, está a procurar a sua nova identidade. O rei de Marrocos avança na estratégia de independência económica, os antigos armazéns que vendiam em Ceuta os produtos vindos de todo o mundo estão a ser substituídos por outros armazéns, já do lado marroquino, abastecidos directamente através do porto de Tanger Med, ainda em expansão, já o segundo maior de África.

Falamos também dos migrantes. Antes, andavam em grupos à beira da estrada, a pé, e era impressionante. Hoje, na vinda de carro, não apareceram, mas no regresso sim, sobretudo num troço plano, com várias rotundas e camiões, junto ao porto Tanger Med. Alguns correm até junto dos carros, nas rotundas, alguns carros fornecem pela janela, sem parar. Há polícia na estrada, mas não em todas as rotundas. Lembro-me de um bom filme que vi no Doc Lisboa em 2008, Bab Sebta, de Pedro Pinho e Frederico Lobo.

Depois do almoço, continuamos em douceur, vemos a estátua de Hércules, compramos os jornais locais El Pueblo e El Faro, visitamos as Plazas Nelson Mandela, de Espana e de los Reyes, ligadas pela Calle Camoens onde se encontra o Hotel Ulises, e tomamos café no Café Teatro Cervantes. Há 12 anos exactamente morreu Saramago, e aqui no café vejo um cartaz anunciando o Festival Sete Sóis Sete Luas, algo está bem.

Por fim vamos à praia, onde a paisagem mais uma vez me impressiona, um Mediterrâneo transparente, azul e verde, o céu quase branco, a areia quase escura. E sobretudo as pessoas, a harmonia de uma população maioritariamente muçulmana que desfruta da praia sem os complexos habituais nas praias frequentadas por muçulmanos (praticamente não se vêem raparigas que não estejam em biquíni e não há “burquinis"), alguns turistas que parecem locais, e aquela senhora loira espanhola de 60 anos que nos serve no bar da praia e que fala árabe marroquino perfeitamente. Esta praia comove.

O relato chega ao fim, ficam as sensações e reflexões. Ceuta, afinal, é ou foi a porta de África, um antro de contrabandistas, um gigantesco souk, uma península espanhola, uma cidade maioritariamente muçulmana, uma praia europeia, um antigo castelo português, a última etapa de muitos migrantes? Ceuta está a mudar, quem não a conheceu antes e vem passar o sábado sente-se bem, em paz, ouvindo as histórias de antigos conflitos.

Nota: Alcácer Ceguer e Alcácer Quibir formam um par, para além de fazerem parte da História de Portugal. Em árabe, Ksar Es Seghir e Ksar El Kébir significam, respectivamente, o pequeno castelo e o grande castelo.

Rita Neves

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