Ketikoti: o Quebrar das Correntes

Para as comunidades racializadas em Amesterdão, o 1 de julho é uma data para reunir forças, reconhecer as continuidades coloniais nos dias de hoje e apontar caminhos para as ultrapassar

A 1 de julho, a cidade de Amesterdão celebra o KetiKoti – o “Quebrar das Correntes” da escravatura —, resultado de anos de pressão política protagonizada pelas comunidades racializadas da cidade. Olhar para esse evento pode ajuda-nos a colocar em perspetiva as lutas em torno da memória e reparação do colonialismo português.

A Holanda foi responsável por cerca de 7% do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e a 1 de julho de 1863 aboliu formalmente a escravatura, embora as pessoas negras tenham sido mantidas naquele estatuto mais 10 anos e os escravocratas indemnizados pelas suas “perdas”. É surpreendente que Portugal, o pretenso campeão da interculturalidade e do abolicionismo, não tenha ainda um evento semelhante. Portugal foi responsável por cerca de 50% do total do tráfico transatlântico de 12 milhões de africanos entre os séculos XV e XIX, sendo de longe o que mais participou neste tráfico desumano e a sua abolição arrastou-se por mais de 100 anos (1761 a 1869).

Para as comunidades racializadas em Amesterdão, o 1 de julho é uma data para reunir forças, reconhecer as continuidades coloniais nos dias de hoje e apontar caminhos para as ultrapassar. Entre as prioridades políticas do movimento antirracista temos a luta contra o racismo quotidiano, de que Philomena Essed dá conta desde os anos 1990s. As questões da representação são também centrais, designadamente os protestos contra a figura do Zwarte Piet e respetivo black face, nos quais ativistas como Quinsy Gario e Jeffrey Afriyie foram presos.

A luta contra o racismo institucional, no currículo escolar e na violência policial presente nas mortes de Tomy Holten, Mitch Henriquez e outros, mas também a crítica à Europa Fortaleza são outras questões em cima da mesa. A “vida após a morte” da escravatura (the afterlife of slavery) tem uma das suas mais violentas expressões na morte de milhares de africanos no Mediterrâneo, às portas da Europa e às mãos dos seus Estados, como aconteceu recentemente em Mellila.

O Ketikoti começa com um desfile — Bigi Spikri (expressão do Suriname que significa “Grande Espelho”) — em que as várias comunidades racializadas marcham pela cidade ao som de música dos territórios que foram colonizados. Na substância, para além da alegria dos trajes coloridos, do swing da banda de percussão e sopros, o desfile atravessa a cidade rompendo o imaginário monocromático do país e criticando, como lhe chama Gloria Wekker, a pretensa “inocência branca” quanto à violência colonial e o racismo holandeses.

Em Portugal, o evento mais parecido com o Bigi Spikri será talvez o “Tributo aos Ancestrais”. Realizado desde 2017, essa cerimónia reúne as comunidades negras em torno de um momento que combina a confraternização e expressão artística (com grupos de batucadeiras, Kola San Jon, por exemplo) com um ato cerimonial de colocação de flores nas águas do Tejo “em memória dos ancestrais e antepassados africanos vítimas do trágico tráfico transatlântico”. A cerimónia termina no simbólico Cais das Colunas, esse chão em que uns veem caravelas triunfantes e outros veem a subjugação secular de vidas negras nos porões daquelas embarcações.

O desfile Bigi Spikri desagua numa cerimónia oficial e nacional em torno do Monumento Nacional da Escravidão (Nationaal Slavernijmonument), no jardim Oosterpark. A construção do monumento por parte do Estado em 2002 resultou de um longo caminho de protesto das comunidades negras na Holanda e da Conferência de Durban. Aí foi anunciada a construção do memorial (2002) e do National Institute for the Study of Dutch Slavery and its Legacy (NiNSee, 2003), que como bem tem demonstrado Kwame Nimako acabaria por definhar perante a ausência de uma política de financiamento do mesmo.

A cerimónia inicia-se com um ato de libação em torno do monumento e é seguido de discursos de figuras reconhecidas das comunidades, representantes institucionais, como o presidente da Câmara de Amesterdão, embaixadores dos países que foram colónias e outros, entrecortados com apontamentos artísticos, e terminando com a colocação de coroas de flores junto ao monumento. Nos dias seguintes as práticas de memorialização em torno do Ketikoti prosseguem no mesmo jardim, com o Roots Festival. Durante dois dias têm lugar inúmeros concertos e workshops de dança, bancas de coletivos que abordam o racismo e a diversidade étnico-racial na cidade, um pouco à semelhança da “Festa da Diversidade” que decorre anualmente em Lisboa, promovida pelo SOS Racismo em colaboração com inúmeras organizações negras e LGBTQI+.

Por cá continuamos a aguardar a construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, cujo projeto foi uma iniciativa da Djass – Associação de Afrodescendentes no quadro do Orçamento Participativo de Lisboa (OP) em 2017 e não um reconhecimento efetivo por parte das instituições do Estado. O memorial combinará um monumento, da autoria do artista Kiluanji Kia Henda, com um centro interpretativo, procurando ser uma contranarrativa sobre uma cidade que hegemonicamente se identifica e celebra o que chama “descobrimentos”, silenciando a ocupação e violência colonial portuguesa.

No Ketikoti deste ano, o presidente do Banco Central Holandês, Klas Knot, pediu finalmente desculpas pelo envolvimento do banco no tráfico escravocrata e anunciou medidas como o aumento da diversidade na organização e a criação de um fundo de cinco milhões de euros para projetos destinados a reduzir “efeitos negativos contemporâneos da escravidão”.

O ano passado, autoridades municipais das principais cidades (Amesterdão, Roterdão e Utrecht) apresentaram também as suas desculpas oficiais pelo envolvimento na escravatura, assim como o banco holandês ABN AMRO em abril deste ano. Contudo, não só o estado holandês continua a recusar fazê-lo (o Primeiro-Ministro, Mark Rutte, considerou que um pedido oficial de desculpas poderia polarizar a sociedade), como pode discutir-se se os passos institucionais que alguns municípios e bancos têm dado serão mais para limpar a imagem da instituição na era Black Lives Matter do que para reparar efetivamente os danos causados.

Em Portugal, estamos longe de um pedido de desculpas consequente e sem subterfúgios. Não é que algumas autoridades portuguesas se negassem a participar num evento como o Ketikoti ou na inauguração do que virá a ser o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. Sabemos que Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, poderia, no mesmo passo, reconhecer o caráter hediondo da escravatura e discursar sobre a secular vocação intercultural portuguesa e o seu pioneirismo abolicionista, como fez, lamentavelmente, na ilha de Goré em 2017.

António Costa, Primeiro-Ministro, participaria talvez com um discurso sobre a violência da escravatura, podendo até evocar a sua experiência enquanto pessoa racializada, mas sabemos que considera que o movimento antirracista contribui para uma “fratura perigosa para a sociedade portuguesa” e para uma “visão autoflageladora da nossa história”. O que diria, por exemplo, Carlos Moedas, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e uma das figuras-chave do PSD? Até que ponto esses discursos se traduziriam em formas de reparação efetiva, material e simbólica? Até que ponto integrariam as relações diplomáticas com os países anteriormente colonizados? Conseguiriam “quebrar as correntes” da busca incessante pela absolvição histórica?

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