Biodiversidade e as redes da vida

As interligações entre biodiversidade, água e alimentos estão na base da segurança alimentar e hídrica e, consequentemente, da saúde. A sobrevivência da espécie humana depende do fornecimento contínuo de vários serviços ecológicos que seriam extremamente caros ou impossíveis de substituir.

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Na região de Vila Real Rui Farinha/PÚBLICO

Imaginem a vida exclusiva em cidades, ou num planeta inóspito como Marte ou a Lua. As casas têm todo o conforto, a energia provém de fontes renováveis que o Homem, com o seu desenvolvimento científico, conseguiu alcançar e a alimentação é toda artificial sem utilização de recursos ou apenas com produção agrícola sem solo, assegurada por cada condomínio. A tecnologia e a aposta na inteligência artificial tinha sido ganha, assim como a conquista de outros planetas, onde se podiam instalar novas cidades, novas sociedades. A luta contra as alterações climáticas tinha sido superada com a possibilidade de um “mundo vazio”, todo ele automatizado, mesmo num ambiente inóspito e moribundo. Seguramente com doenças e pandemia controladas pelo isolamento e artificialização de ambiente, mas à custa de fortes desequilíbrios mentais. Se isto é possível em filmes de ficção científica, que tipo de sociedades estaríamos a construir na vida real?

Numa altura em que temos consciência de que as actividades económicas têm provocado um forte impacte no planeta, afectando o clima global, temos ainda pouca sensibilização para o efeito dominó que estamos a provocar com a perda contínua de espécies. É esta necessidade de sensibilização e consciencialização sobre a biodiversidade a razão pela qual as Nações Unidas proclamaram 22 de Maio como o Dia Internacional da Diversidade Biológica. Em 2022, o tema não podia ser mais sugestivo ao alertar para a importância das redes da vida na segurança alimentar e saúde pública.

Do ponto de vista egocêntrico, proteger a biodiversidade é do nosso interesse. Os recursos biológicos são os pilares sobre os quais construímos civilizações. Suportam indústrias tão diversas como a agricultura e pescas, cosmética, farmacêutica, papel e celulose, construção e tratamento de resíduos. A perda de biodiversidade e habitats ameaça a produção de alimentos. E a consequência da guerra da Ucrânia serve de exemplo. Os danos actuais e próximos são já avassaladores, ameaçando a auto-suficiência de muitos países.

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Na região de Vila Real Rui Farinha/PÚBLICO

No século XXI, as catástrofes, ocorridas num determinado local, afectam toda a economia global e as epidemias, ou surtos virais, acabam por corromper equilíbrios instalados. Os organismos vivos, adaptados a um aumento gradual de temperatura, ressentem-se, quebram as interligações e o ecossistema fica instável e pode quebrar. A necessidade destes ecossistemas, que ignoramos, é muitas vezes importante e imprevisível. São vários os exemplos em que se recorre ao conhecimento da resistência e do comportamento de certas plantas e animais para o desenvolvimento de novos fármacos, para a cura de doenças que afectam a humanidade ou de novos alimentos, para diversificação da dieta alimentar. As interligações entre biodiversidade, água e alimentos estão na base da segurança alimentar e hídrica e, consequentemente, da saúde. A sobrevivência do Homem enquanto espécie depende do fornecimento contínuo de vários serviços ecológicos que seriam extremamente caros ou impossíveis de substituir. Esses serviços naturais são tão variados que são quase infinitos. Por exemplo, seria impraticável substituir, em grande medida, serviços como o controle de pragas realizado por várias criaturas que se alimentam umas das outras ou a polinização realizada por insectos e pássaros em suas actividades quotidianas.

As estratégias de mitigação e adaptação às alterações climáticas, que estão hoje na agenda política, só poderão ser eficazes se existir o conhecimento científico sobre o funcionamento dos ecossistemas. A abordagem ao nível do ecossistema é fundamental porque aborda as interacções entre sistemas bióticos, dos quais os seres humanos são uma parte integrante, e sistemas físicos e químicos, de que depende.

O grande desafio deste século é compreender que alterações climáticas, perda de biodiversidade, degradação da paisagem e poluição estão intimamente interligados. O sistema climático, directamente relacionado com a quantidade, distribuição e balanço da energia no planeta, é afectado pelo excesso de exploração de recursos e desenvolvimento económico; a biodiversidade, base dos recursos biológicos de que o Homem depende no seu dia a dia, permite aumentar a resiliência às alterações abruptas ou graduais; a degradação da paisagem tem vindo a ser progressiva pelas mudanças sociais em países desenvolvidos e em pleno desenvolvimento como a China, Índia e Brasil; a poluição está directamente relacionada com todos os excessos decorrentes do desenvolvimento económico e da sociedade de consumo.

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No Complexo de Salinas do Samouco, Alcochete Daniel Rocha

A perda de biodiversidade, muito associada à alteração da paisagem, é, à escala planetária, uma das mais importantes transformações que importa aprender a minimizar, enquanto se aumenta a eficiência dos sistemas de produção de alimento, num período de alterações climáticas e sob um clima de guerra espalhado por todos os continentes. Globalmente, as alterações ao uso e exploração dos recursos em terra e no mar são os principais factores que levam à perda de espécies.

O que é a biodiversidade e porque é tão importante?

Biodiversidade é muito mais do que número de indivíduos ou riqueza de espécies, refere-se a toda a variabilidade existente entre seres vivos, incluindo a diversidade genética dentro da mesma espécie, em espécies diferentes e ecossistemas. Ou seja, não basta termos uma monocultura, herbácea ou florestal para maximizar a produção, onde não há diversidade genética. Pelo contrário, este “tipo” de diversidade pode implicar o aparecimento de pragas ou doenças ficando a produção globalmente afectada. O mesmo se passa com ecossistemas idênticos e contíguos. Não existindo variabilidade, a capacidade de resistência é praticamente nula. E isto explica o alastramento de incêndios porque as paisagens continuamente uniformes, são ecossistemas de produção pouco complexos e/ou altamente explorados pelo homem.

O que se sabe é claro. Quando há diversidade genética dentro de espécies, em espécies e ecossistemas, a biodiversidade aumenta e a sua capacidade de resiliência, por exemplo, a fogos e tempestades, é maior. Nos ecossistemas naturais estabelece-se uma teia de dependências complexas que as torna intimamente ligadas e resilientes. A vulnerabilidade e perda de resiliência dos ecossistemas deve-se não só ao desaparecimento de espécies, mas sobretudo à perda acentuada de variabilidade genética entre espécies e dentro da mesma espécie.

Quer isto dizer que nos ecossistemas ditos “saudáveis” existe um elevado número de espécies que contribuem para a mesma função, que se complementam, constituindo redes ecológicas (redes da vida) que asseguram o equilíbrio do sistema. Por exemplo, o controlo do ciclo de água pode ser assegurado por plantas (herbáceas ou arbóreas) capazes de canalizar a precipitação para o seu espaço envolvente, conduzindo a formação de nichos ecológicos explorados por certas espécies de animais para alimento, abrigo, como no caso do montado. Em zonas de rio ou riachos as árvores ripícolas (ribeirinhas) amortecem a velocidade da água de escorrência e filtram-na antes de chegar ao rio ou riacho. As lontras podem ter papel fundamental na limpeza contínua dos cursos de água e o lobo, ou outro carnívoro, pode ajuda a manter as zonas ribeirinhas ao controlar a população de herbívoros que, em excesso, alteram a estrutura da vegetação das margens. São diferentes espécies, com estratégias de vida distintas que contribuem para manter o fluxo de água, matéria e energia e assegurar o equilíbrio termodinâmico presente no ecossistema. Quanto maior a diversidade de funções, mais complexa se torna a conectividade entre espécies e mais forte se torna a rede que sustém a vida naquele ecossistema.

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No Complexo de Salinas do Samouco, Alcochete Daniel Rocha

As diferentes mensagens que nos chegam diariamente sobre a perda de diversidade de espécies no planeta são inúmeras e inequívocas. O Homem, directa e indirectamente pela sua necessidade de explorar recursos naturais, está a delapidar as espécies e a adulterar e uniformizar os ecossistemas. A biodiversidade, a base de sustentação dos serviços dos ecossistemas de que dependemos, fornece a estabilidade do meio envolvente, tão presente, sempre tão “garantido”, que a sociedade humana não entende o suporte que ela transmite e a dependência de sustentabilidade que cria. Temos dificuldade em entender isto, não só por falta de divulgação, mas sobretudo porque na sociedade de consumo em que vivemos e no imediatismo do bem adquirido, poucos são os que conhecem, se interessam e são sensíveis às questões de salvaguarda dos recursos naturais e da sua sustentabilidade.

Que fazer?

Mitigar o impacte da perda de biodiversidade requer, portanto, uma mudança fundamental no pensamento e práticas económicas. O crescimento não pode, nem deve, ser feito à custa da delapidação dos recursos naturais, o que implica saber utilizar a biodiversidade como ferramenta inovadora e empreendedora. Inovadora, porque os que conhecem a fundo a biodiversidade podem – e devem – colocar esse conhecimento na gestão de culturas agro-pecuárias e silvícolas, na reflorestação e/ou nas práticas de restauro ecológico, em terra ou no mar. Empreendedora, porque tirando partido do conhecimento das espécies pode-se melhorar a qualidade dos solos, aumentar a produtividade, a capacidade de retenção de carbono, contribuindo assim para diferentes metas económicas e ambientais. Não é por acaso que esta é a década do restauro ecológico. Os projectos de recuperação devem ser vistos como “peças de um puzzle” com estádios múltiplos e sucessivos que requerem uma contínua orientação e monitorização. Dada a incerteza sobre a evolução da dinâmica dos ecossistemas em resposta às alterações climáticas, o restauro deve aplicar soluções baseadas na natureza, para assegurar os serviços do ecossistema.

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Em Mertola, Alentejo Miguel Manso

O tráfico de espécies é outra ameaça a legislar e ter uma fiscalização apertada. Cometida umas vezes por desconhecimento, outras por ilegalidade e lucro fácil constitui um negócio que, de acordo com a Sociedade de Conservação da Vida Selvagem, pode gerar entre 4,3-17 mil milhões de euros. Este tráfico pode ser para uso doméstico (animais raros para estimação, depois largados no ambiente quando são difíceis de cuidar, ou plantas de rápido crescimento com flores vistosas que lançadas no ambiente florescem e atapetam os espaços) indústria, alimentação ou outros. O negócio acaba por gerar riscos e impactes. Riscos, porque competem por espaço e alimento com as populações de espécies nativas; impactes, porque alteram o habitat, introduzem parasitas e doenças, afectando não só as espécies nativas, mas podendo transmitir doenças aos humanos. Embora este tipo de comércio tenha surgido com os descobrimentos, e a necessidade de trocar novas espécies, no mundo actual causam impactes muito acentuados para o equilíbrio dos ecossistemas. São resilientes às alterações climáticas, ao fogo, e rapidamente desenvolvem estratégias de reprodução que lhes permite reocupar novos terrenos. E isto generaliza-se às plantas, aos animais e aos microorganismos, na sua maioria ignorados, mas que estão na base da complexidade das interacções que se estabelecem no ecossistema. É para aumentar a sensibilização destes riscos que é desenvolvida a semana ibérica de espécies invasoras com actividades espalhadas por todo o país que irá decorrer de 21 a 29 de Maio.

O actual paradigma, associado ao investimento em energias renováveis para seguir o Acordo de Paris e as metas europeias, pode também afectar todo o espaço natural. À semelhança do que se passou com a profusão de barragens e eólicas, estamos agora a assistir à difusão de outros projectos, lançados com a benevolência e o aplauso político, sem acautelar a preservação dos valores naturais. É o caso da ocupação de solos de baixo rendimento agrícola com painéis fotovoltaicos, projectados para zonas semi-áridas, com uma forte exposição solar. O interesse dos proprietários e das empresas alia-se ao do governo, mas sem existir projecção de efeitos ao longo do tempo. Brevemente, teremos o Sul do país transformado numa paisagem silenciosa, maioritariamente de ferro e espelhada, tanto dos painéis como das estufas.

Outra incongruência do desenvolvimento económico está ligada ao turismo e à facilidade com que as câmaras podem, hoje em dia, alterar os seus Planos de Desenvolvimento Municipal (PDM) para deixar de se comprometer com as limitações impostas pela Reserva Ecológica Nacional, implementada há 40 anos. Com estas alterações os terrenos podem ser vendidos para projectos turísticos, hipotecando e adulterando paisagens naturais pelas quais os turistas são atraídos e nos visitam.

Todas estas políticas ao abrigo do cumprimento da redução das emissões de gases com efeito de estufa e do desenvolvimento económico do país, ameaçam a protecção adequada dos habitats e das espécies de interesse comunitário a que a União Europeia obriga todos os países membros. O Pacto Ecológico Europeu e a Estratégia de Biodiversidade para 2030 são também normativos no que concerne à conservação da biodiversidade. Não é por acaso que, desde 2019, a Comissão enviou uma notificação a Portugal para cumprir medidas estratégicas de conservação através da designação de zonas de protecção da natureza. Portugal está, neste momento, em incumprimento porque ainda não propôs todos os sítios que deveria ter, incluindo os sítios marinhos. E os sítios já propostos não abrangem adequadamente os vários tipos de habitats e espécies que necessitam de protecção. A ironia de todo este processo é o facto de Portugal ser considerado um exemplo a seguir quanto à utilização de energias renováveis, mas ser criticado – e quiçá punido – por não assumir as suas responsabilidades perante a perda de biodiversidade.

Mesmo com inúmeras actividades de educação ambiental que as sociedades científicas possam realizar, se elas não forem acompanhadas com estratégias políticas e fiscalização adequada, estamos a hipotecar as redes da vida de que dependemos, quer do ponto de vista ambiental, social ou económico. À semelhança do empenho demonstrado com o Acordo de Paris, espera-se que Portugal venha a comprometer-se, seriamente, com o Acordo Global para a Natureza.

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