Juiz quer que Maria de Fátima Bonifácio seja julgada por racismo. Defesa vai recorrer

Juíz de instrução de Matosinhos considera que no seu texto no PÚBLICO, a 6 de Julho de 2019, a arguida “ofendia, rebaixava e inferiorizava” os grupos visados “em razão da cor da sua pele e origem, pertença cultural ou étnica”. E argumenta: “Liberdade de expressão não é um direito que possa ser exercido de forma irrestrita ou ilimitada.” Defesa vai recorrer, segundo o seu advogado.

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A arguida escreveu frases como "os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis" ou os "africanos e afro-descendentes também se auto-excluem" e "odeiam ciganos" Daniel Rocha

O Ministério Público arquivou, mas o juiz de instrução criminal de Matosinhos discordou e decidiu pronunciar a historiadora Maria de Fátima Bonifácio para julgamento pelo crime de discriminação por causa de um texto que assinou no PÚBLICO a 6 de Julho de 2019. O texto motivou uma queixa-crime no MP de Lisboa da associação SOS Racismo, logo a seguir à sua publicação, e depois um pedido de abertura de instrução. A arguida vai “naturalmente” recorrer da decisão de pronúncia, segundo o seu advogado, Francisco Teixeira da Mota (também advogado do PÚBLICO). Contactada, a historiadora não quis comentar.

A decisão do juiz de pronunciar Maria de Fátima Bonifácio, assinada a 21 de Março por Miguel Aranda Monteiro, e só agora tornada pública, inclui ainda a medida de coacção menos gravosa, termo de identidade e residência. O texto de Fátima Bonifácio motivou indignação interna no jornal e mais tarde um editorial do director do PÚBLICO, Manuel Carvalho, “no qual se rejeita o teor do artigo e as expressões usadas pela autora”. Também um grupo de 14 profissionais de várias áreas — professores universitários, escritores, juristas, cineastas, entre outros, como as procuradoras do Ministério Público aposentadas Dulce Rocha e Aurora Rodrigues, o escritor José Eduardo Agualusa, os jornalistas António Borga, Diana Andringa, os académicos António Pedro Dores e Manuela Ribeiro Sanches — apresentou uma queixa-crime.

Na decisão recente, citando vários excertos do texto de Maria de Fátima Bonifácio, o juiz refere que proferiu as frases “sabendo que com elas ofendia, rebaixava e inferiorizava os grupos/comunidades visados — que a arguida designa de ‘africanos e afrodescendentes’ e ‘ciganos’ —, em razão da cor da sua pele e origem, pertença cultural ou étnica”; defende que a arguida publicou o seu texto e sabia “que o mesmo era ofensivo e discriminatório”, e “que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal”.

Nesse texto, a arguida escreveu frases como: “Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprios; “Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a integração; “é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral” ou “africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios: e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou ‘nacionalidades’ rivais.”

Fátima Bonifácio irá responder pelo crime previsto no artigo 240.º do Código Penal, aplicado a quem “difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”. Para o juiz de instrução, “a liberdade de expressão não é um direito que possa ser exercido de forma irrestrita ou ilimitada” e “existem limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e as opiniões; de resto, este exercício “implica deveres e responsabilidades”. Argumenta também que, “ainda que proibida toda e qualquer forma de censura”, é lícita “a repressão dos abusos”, “quando necessária à garantia do respeito por outros direitos”. Justifica que “a liberdade de expressão terá menor amplitude quando o discurso se dirija não a uma, mas um grupo de pessoas, especialmente quando estas constituam, na sociedade em questão, uma minoria. Deve ainda ter-se em conta a representatividade que tal grupo tem na sociedade em questão, na medida em que tal influencia a capacidade de exercício do direito de resposta e de discussão das ideias, factos e juízos de valor que são dirigidos às pessoas que o compõem”.

Referindo que o texto assinado pela arguida foi escrito e publicado “no âmbito da discussão política de propostas de medidas concretas, nomeadamente a previsão de quotas para minorias e a generalização do acesso ao ensino superior”, o juiz refere: “Não pode deixar de se constatar que, nesse contexto ou com esse pretexto, a autora faz uma série de generalizações e afirmações em que formula juízos de valor carregados de conotação objectivamente negativa sobre grupos de pessoas que designa como ‘africanos’ e ‘ciganos.”

Segundo a decisão, a defesa refere que “a arguida não pretendeu ofender ou discriminar nenhuma pessoa ou grupo de pessoas com as expressões constantes do referido artigo de opinião”, mas para o juiz é “manifesto que a arguida conhecia o significado das expressões que proferiu, não se concebendo a possibilidade de que não soubesse que com elas ofendia e humilhava os visados, querendo ainda assim utilizá-las no seu escrito”.

Depois do arquivamento pelo MP, o SOS Racismo recorreu da decisão ao Tribunal de Instrução Criminal, que confirmou a decisão. O SOS recorreu então ao Tribunal da Relação de Lisboa, que entendeu que o requerimento deveria ser reapreciado e que existiam indícios da prática do crime. O processo voltou ao TIC de Lisboa, que na altura entendeu que aquele não era o tribunal competente mas sim o de Matosinhos, pois a sede do jornal PÚBLICO é na Maia.

Em comunicado enviado nesta quarta-feira, o SOS Racismo congratula-se com a decisão, que diz confirmar o que defendiam: “As afirmações de Fátima Bonifácio foram, no mínimo, infundadas, insultuosas, ofensivas e lesivas da
honra e dignidade de milhões de pessoas, porque sustentadas em generalizações abusivas e em preconceitos explicitamente racistas e xenófobos.” Acrescentam: “Nunca se tratou de contrariar qualquer exercício de liberdade de expressão, mas sim de garantir que esta não pode ser invocada para atentar à dignidade humana.”

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