O meu nome é Maria Mira

Seja Lisboa solidária, a várias cores, pois que numa bandeira podem caber tantas cores quantas realidades queiramos acolher.

Apresentou-se. “O meu nome é Maria Mira”. Da Síria fugiu em 2015 num horizonte traçado pela Turquia, sempre evitando os Curdos. Atravessou o mar num bote de plástico numa viagem que lhe custou seiscentos euros. Resgatados por militares gregos, Maria Mira permaneceu no campo de refugiados da Grécia até chegar a Portugal. Vive em Lisboa.

Com este testemunho de 5 minutos fechou assim Baby Doll, um espetáculo transdisciplinar da coreógrafa e diretora artística francesa Marie-Eve Signeyrole, acolhido pela Fundação Calouste Gulbenkian num repleto Grande Auditório durante os dias 2 e 3 de abril.

A partir da 7.ª Sinfonia de Beethoven interpretada pela Orquestra Gulbenkian com arranjos pelo compositor e clarinetista Yom, Marie-Eve Signeyrole coloca no palco a questão da migração e dos seus múltiplos cruzamentos, que se fazem também através da arte como as disciplinas que escolheu: a música, a dança, o documentário, a escultura, o multimédia.

Um mesmo palco e duas projeções da realidade. Iluminações diferentes a transmitirem a ideia de passagem sempre presente. Das zonas mais iluminadas às mais escuras, a orquestra dispunha no palco seguindo pormenorizadamente este conceito cromático da realidade. Da esquerda para a direita colocou-se primeiro o piano e depois as cordas a beneficiarem de maior iluminação. Ainda à esquerda a percussão para deixar, ao fundo os sopros disputando palco com uma outra zona de percussão que ocupava igualmente a extremidade direita e a extremidade esquerda do espaço de cena. Os sopros e os metais, dramáticos, condenados quase sempre numa escuridão total. Mas era aqui, na zona menos iluminada, onde se desenrolava o enredo, onde se ficcionava o mar, os objetos escolhidos – uma boneca – os objetos perdidos – uns óculos – os objetos disputados - uma garrafa de água – e a tempestade constante.

Dos mortos não se pensava salvá-los, recolhiam-se os coletes salva-vidas mais tudo o que tivesse utilidade e prosseguia-se.

À mulher preta os homens atiravam-lhe areia branca, à mulher branca os homens violavam-na com raiva e as duas, no epicentro da cena do ódio, disputavam a boneca.

Dois ecrãs, um na horizontal e outro na vertical, projetavam visões diferentes de uma mesma realidade. No da extrema-esquerda, colocado na vertical, narrava-se a realidade de quem conta um conto, de quem escreve uma notícia, de quem constrói uma reportagem. Tudo ali era mais rosa e entre a palavra escrita e estrada corrida, pouco se sabia das pessoas. Só a ampulheta e a lanterna numa fixação entre tempo e visão. Mas ali havia também espaço para a arte dentro da arte, com esculturas de humanos a imitarem posturas de outros humanos em posições reais do sofrimento.

Numa Lisboa solidária, entregue a uma missão tão maior que às vezes parece forçada, a Guerra da Ucrânia entra-nos por todos os canais de informação e nem o silêncio tem espaço. Não se respira entre duas Ave-marias, só a entrega à causa draconiana da salvação mais que justa das mulheres e das crianças da Ucrânia no meio de um conflito bélico geopolítico justifica um ou outro intervalo entre a respiração. E sem intervalos, todas as outras guerras calaram-se. Provavelmente aumentam as guerras da guerra, mas a que se veste de azul e amarelo é mais guerra que qualquer guerra. O mal também tem camadas.

Quanto a Baby Doll, é um espetáculo para além de todo este espetáculo diariamente televisionado. Feito em linha, quase sempre de um extremo ao outro, da extrema-esquerda à extrema-direita, sem paragens ao centro, cresce sem permitir nada que não o desassossego. Um excelente trabalho que não podia expressar melhor isto que é o sonho europeu.

Hoje como há quase 50 anos atrás Portugal é um centro de chegada. Vem-me à memória aquelas imagens dos pós 25 de Abril com as malas perdidas na placa do aeroporto. Há vidas que valem mais do que outras vidas.

A mulher negra morreu. A mulher branca tentou salvá-la. Ter-se-á salvado a ela própria? Salvou-se a humanidade por detrás das grades colocadas para separar o público do palco? A realidade será sempre mais do que uma história, pois que as coisas não são sempre aquilo que parecem.

Seja Lisboa solidária, a várias cores, pois que numa bandeira podem caber tantas cores quantas realidades queiramos acolher. Lauro António bem sabia-o, se fosse ele a escrever esta crónica quantas mais cores relataria? Numa sua Mensagem, sobre Lisboa, sobre Alain Tanner, sobre a humanidade, escrevia: “As viagens ao longo das ruas sinuosas de Lisboa são motivo para uma sucessão de silêncios e olhares, de gestos e aproximações, de meias palavras e de fugas nocturnas, o que tem evidentemente a ver com a procura (não confessada) de um paraíso perdido, uma pacificação interior, um regresso a si próprio, ao que de mais autêntico e profundo existe no homem.” Expressou a totalidade.

E eis Marie-Eve Signegneyrole de volta a Lisboa novamente em grande. Que espetacular noite no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian.

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