Reflectindo sobre o papel dos limites da amizade

Quais são os limites que uma amizade deve ter para uma duração fértil? E porque são eles importantes?

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O meu primeiro texto deste novo ano debate-se, na verdade, com uma temática que há anos percorre as minhas reflexões pessoais e que pretendo agora colocar em discussão: a amizade. Esta constitui um dos três principais pilares afectivo-relacionais que construímos colectivamente – os outros dois são a família e o vínculo romântico. O filósofo grego Sócrates, há vários séculos, já afirmava que “para conseguir a amizade de uma pessoa digna é preciso desenvolvermos em nós mesmos as qualidades que naquela admiramos”, expondo a dimensão de compromisso deste valor que tanto vemos defendido no quotidiano. Perante a necessidade desta interdependência para o florescer do estatuto de amigo/a e das vivências subjacentes, quais são os limites que uma amizade deve ter para uma duração fértil? E porque são eles importantes?

Bem, comecemos pela segunda pergunta. A questão da existência de fronteiras ou barreiras é a mesma da relação entre direitos e deveres. Há quem, no mundo científico, advogue que estes dois conceitos não deveriam ser apresentados de forma antagónica, dado que o dever é também um direito (o direito a ter deveres) quando se inscreve numa cidadania activa, inclusiva e responsável que é capaz de considerar a sustentabilidade da vida em comunidade. Do mesmo modo, pensar o limite exclusivamente como um condicionador ou um incapacitador de experiências mais diversas é cair num erro de reducionismo. Este pode ser uma oportunidade. Quando, por exemplo, pedimos a um/a amigo/a que respeite algum gosto nosso, por mais cómico que pareça ser, e explicamos as razões desse pedido, permitindo a comunicação, a partilha e a confiança, estamos a ser capazes de criar fronteiras que servem de vigilância simultaneamente crítica e amorosa. Crítica porque consciente (do ónus do nosso pedido, da consideração do outro pelo mesmo e da ligação harmoniosa que aqui se cria e se recria) e amorosa porque crítica.

Daí que, agora partindo para a primeira interrogação, não haja limites concretos nem estanques que se constituam como regras do que suceder numa amizade. Se, por um lado, ninguém admitirá determinadas atitudes e comportamentos (traições, desprezos e ofensas às nossas convicções, brutalidades para com outros/as amigos/as nossos/as, entre outros), estes termos não passam, por outro, de entidades abstractas que precisam de ser objectivadas nos contextos amicais. Todavia, para tal, torna-se necessário que, precisamente, se tenha em consideração cada pessoa envolvida e se conheça as suas histórias e os seus pensamentos, ou seja, as suas singularidades. No fundo, a amizade é uma coisa educacional: aprende-se a amigar com simultâneas paciência e actividade e uma conjugação entre interesse de perceber e desinteresse pelos lucros superficiais.

Por outras palavras, educamo-nos para sermos amigos/as. Isto implica, naturalmente, receios, quedas, erros. Nada do que é humano é perfeito, mas em tempos nos quais projectar alguma coisa durável é um desafio estrutural revela-se imprescindível que tenhamos em conta o quão bons/boas companheiros/as de viagem fazem falta tanto em momentos de simplicidade como de complicações. Saber estar só e saber viver em conjunto com aquelas pessoas em quem mais confiamos, eis o meu desejo para 2022. Termino com uma citação maravilhosa que encontrei quando procurava por testemunhos de autores/as sobre a amizade, do escritor brasileiro Machado de Assis: “Não é amigo[/a] aquele[/a] que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz...”.

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