Mudam-se os tempos, mas não se mudam os tratos

Num país onde morreram 35 mulheres em contexto de violência doméstica em 2019, 16 em 2020 e onde , só até novembro deste ano, já foram mortas 23 mulheres, 20 delas em contexto de violência doméstica e contexto familiar, temos de reconhecer que estamos perante um flagelo merecedor das devidas e adequadas respostas.

No dia em que se assinalou o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, ficámos a saber que em 2020 apenas oito mulheres vítimas de violência doméstica solicitaram o apoio criado há um ano para reestruturação da sua vida em família. Uma licença especial já proposta em sede de Orçamento do Estado 2020 e que se concretiza num apoio financeiro (claramente aquém do proposto e desejado: o valor mínimo para uma pessoa desempregada é de 146 euros) e numa licença de 10 dias para que a vítima possa mudar de casa, quando sejam obrigadas a abandonar o seu lar, e reorganizar a sua vida familiar.

Ora, sendo este apoio concedido só após a vítima preencher um formulário para pedir o apoio e ver reconhecido o estatuto de vítima (além de ter de provar que foi forçada a sair de casa), podemos identificar algumas causas para um tão baixo número de mulheres que auferiram deste apoio: o medo de represálias do agressor; o desconhecimento sobre a existência deste apoio; os moldes do subsídio e a situação laboral das vítimas destes crimes.

Num país onde morreram 35 mulheres em contexto de violência doméstica em 2019, 16 em 2020 e, só até novembro deste ano, já foram mortas 23 mulheres, 20 delas em contexto de violência doméstica e contexto familiar, temos de reconhecer que estamos perante um flagelo merecedor das devidas e adequadas respostas, tendo em conta as gravosas e profundas repercussões nos planos pessoal, familiar, profissional e social das vítimas. Acresce que, só no último trimestre, foram participados e denunciados à PSP e à GNR 7610 casos de violência doméstica, o que por si só demonstra a gravidade do problema que enfrentamos.

Mas quando condenamos todas as formas de violência sobre as mulheres, não podemos nunca esquecer os outros tipos de violência de que as mulheres são alvo diariamente: formas de violência que se têm perpetuado ao longo de várias e várias gerações.

Uma em cada três mulheres portuguesas foi ou é vítima de assédio sexual. Na rua, em casa, no trabalho, nos mais variados contextos. Não é de hoje a luta contra esta prática que tem persistido ao longo de décadas. Continuam a persistir preconceitos, estereótipos e práticas discriminatórias na nossa sociedade que vivem sob o véu da ameaça, do medo, do exercício desigual e do abuso de poder.

A consagração da igualdade do género na Constituição da República Portuguesa foi aprovada apenas em 1976, o que não foi insuficiente para reduzir a desigualdade que continua a prevalecer entre homens e mulheres, sobretudo em contextos de trabalho - em 2019 verificou-se um fosso salarial entre géneros, com rendimentos horários brutos das mulheres 14,1% abaixo dos homens, em média - e no exercício de cargos de liderança política. Nunca Portugal conheceu uma Presidente da República ou uma primeira-ministra “eleita”, o que não deixa de ser lamentável. Em 2019, a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres fez uma análise sobre a participação das mulheres na política desde 1974 e concluiu que dos 1970 governantes, 1776 foram homens e 194 foram mulheres (apenas 9,8 por cento).

Lembremo-nos do seguinte: a desigualdade e violência de género custam a Portugal oito mil milhões de euros por ano. Qualquer uma destas formas de violência constitui uma forma de desrespeito pelos direitos humanos, pela integridade sexual, física e emocional das mulheres, assim como formas de exercício de poder e opressão, que deixam sequelas para a vida. Cabe a todos e a todas combater estes fenómenos, pois esta não é uma questão (apenas) de mulheres, é uma questão para a qual os homens também estão convocados!

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